É Assim Que Os Deuses Nascem

Em seu aposento ele repousava coberto pelas sombras de tragédias passadas, guiado pelo intuito de que a paz possa ser encontrada em seus sonhos, remoendo a proposta que havia aceitado no passado. Nada em vida é seu, mas em seus sonhos possuía domínio e controle. La repousa o antigo rei de terras distantes e ocultas pela modernidade humana, anos e mais anos passaram-se como um feixe de luz na autoestrada e a lembrança do amor o mantinha acordado.

Metade homem, metade outra coisa. No passado, quando ainda era humano e muito jovem, o garoto em vários sonhos noturnos se via sentado num imenso campo cinza com arvores pretas e sombrias, coberto por um céu misterioso o bastante para lhe causar calafrios. Houve o sonho nesse mesmo local onde uma criatura encapuzada que flutuava sobre as planícies e bordas dessa existência irreal chegará perto, estendeu a mão esquelética e lhe ofereceu sua sabedoria em troca de moradia, até mesmo o mais sábio das criaturas ancestrais fora tomado pela solidão. Não houve julgamento, nem reflexão, para ele era apenas um sonho distante e passageiro, mas solidão o percorria e ele simplesmente aceitou.

Acordou no outro dia e lá estava, mais sábio e destemido por si só.

Viveu dias e anos esbanjando a sabedoria ganha pela criatura, quando adulto escreveu livros; romances surreais e terrores cósmicos imagináveis, notáveis aplausos e elogios o percorreram durante toda sua estadia em terra. Mas houve o dia em que a criatura misteriosa finalmente pegou-lhe o que a foi dada por direito; moradia. Mesmo que seu corpo seja de um adulto, para a criatura ele nada mais era que um garoto perdido em seus sonhos noturnos, era lá que a essência desse homem aplaudido por milhares de outros homens vivia escondido.

Nas noites o garoto já não era mais só ele, seus olhos se tornavam negros, miseráveis e tomados por sombras irreais, era a criatura tomando conta. Ele caminhava entre as ruas observando toda aquela humanidade pútrida que gastavam suas riquezas em troca de bebida e música, lentamente destruíam a si mesmas, matando seus órgãos e suas almas em bares, festas sem sentido e em conversas tão vazias quanto o coração do Diabo. A criatura em inicio se arrependeu do trato, não havia nada no mundo que lhe satisfazia e nem nada para ser tomado, perceberá o motivo dos antigos deuses terem abandonado esse local e dava razão aos mesmos. Nada na humanidade poderia acrescentar na existência dos deuses e em sua infinita sabedoria ancestral, a não ser o próprio garoto.

— O que eu sou!? — gritava o garoto pela manhã enquanto olhava para seu reflexo no espelho

— O que nós somos? — sussurrava a criatura

Houve a noite que em sonho o garoto fora levado a algum lugar sombrio e abandonado nas lembranças do Universo, caminhava por uma longa estrada que pairava sobre o vazio do Cosmos, quanto mais adentrava aos confins da existência, menos sentia sua humanidade, seus olhos, sua carne, sua face. Finalmente algo ganhava forma no fim da estrada; uma enorme porta coberta por grifos e símbolos que não faziam o menor sentido para quem os visse, com uma aura negra ela se abria ao garoto se aproximar, de dentro enorme construções geométricas e góticas ganhavam vida, ao lado da porta estava a mesma criatura do seu sonho, encapuzada e com sua longa veste desenhando forma irreais a sua volta.

— Você chegou — disse a criatura

— Onde estamos?

O garoto pode jurar que em uma fração de segundos pode ver a mandíbula óssea da criatura mover-se enquanto proferia nada, como se respirasse pela boca.

— No local onde os deuses nascem, vamos!

Enquanto caminhavam várias criaturas diabólicas percorriam e esgueiravam-se naquelas construções uniformes, os fitavam como se fossem comida.

— Não ligue para elas, são meras parasitas necessárias!

Aos poucos mais seres apareciam, mas esses eram diferentes. Cobertos por enormes vestes pretas compridas que moviam-se como se houvessem vida própria, aproximaram-se de uma porta que o garoto poderia jurar que não estava ali a alguns segundos atrás e quando adentraram as formas góticas desapareceram e novas construções que agora possuíam mais sentido que as antigas, feitas de pequenos tijolos vermelhos e alguns sujos demais por musgos, o céu agora ganhava destaque com sua imensidão de estrelas que não possuíam cor compreensível, se encontravam em uma praça sem fim lotada por criaturas e entidades das sombras, anjos sem asas e demônios que possuíam asas formidáveis porém negras e maléficas, jurou ter ouvido alguém ter chamado um daqueles seres por um nome, Morfeu.

— Onde estou especificamente? — perguntava o garoto

— Estamos onde todos da minha raça se encontram, todos aqui com exceção dos deuses do sono estão ligados a um humano.

— Mas não vejo mais nenhum humano aqui além de mim

— Vocês não conseguem se ver, embora existam poucos escolhidos dessa vez

— Escolhidos?

— Exato, nem todos nós encontramos humanos que mereçam a eternidade

— E porque exatamente você acha que eu a mereço?

— Você saberá daqui a pouco...

Em um piscar de olhos uma criatura imensa, alta, enorme, não havia definição para tal, completamente esquelética e com órbitas luminosas surgiu em frente a todos presentes naquela praça, as criaturas ajoelharam-se e muitas outras apenas inclinaram-se por respeito, o garoto se abaixou e com uma das mãos no chão pode sentir as sombras e minúsculas criaturas irreais caminhando por sua pele.

Uma voz ecoou e aprofundou-se dentro do interior de todos ali presentes, por ainda possuir uma essência completamente humana o garoto nada pode ouvir a não ser um barulho perturbador de estática e ruídos sem fim, foi então que o chão dissolveu e de baixo agora não havia nada, apenas linhas temporais que formava um enorme abismo:

— Agora chega de sonhos para você — disse a criatura ao seu lado

O garoto foi puxado por uma força quase surreal para dentro do abismo, enquanto caia as linhas temporais ao seu lado ganhavam formas humanas, naturais, pode perceber que então estava ali relembrando de toda sua vida até então. O flash de uma memória surgiu em frente a seus olhos, eram seus pais em seus primeiros momentos da noite que veria a ser a noite em que sua existência foi definida, viu os olhos apaixonados de seu pai encarando sua mãe que desenhava a montanha em frente aos dois, até mesmo foi presenteado com o amor que gerou sua criação, os toques e movimentos tomados pela malicia e amor. Outros feixes de memórias surgiram em volta de sua mente e desapareciam rapidamente, porém não o bastante para que ele não pudesse as sentir e lembrar.

— Agora, o motivo para eu te escolher

Uma voz veio de trás de sua cabeça, a criatura pairava ali enquanto ambos caiam eternamente e formas sombrias cobriam o garoto.

Te vi pela primeira vez quando você tinha 10 anos de idade, brincando e imaginando um mundo onde anjos poderiam ser vistos e abraçados. Desde ali tirei tempo para sempre passar e te observar, e nos seus dezoito anos entrei pela primeira vez nos seus sonhos, no enorme campo cinza te esperei chegar.

Após nosso trato fiquei em silêncio observando seus atos, você jamais demonstrou total egoísmo com sua sabedoria irreal, ganhou o mundo com elas, ganhou o amor através dela também, como poderá uma mulher amar alguém perdido entre dois mundos? Você trouxe esperança aos demais deuses dos sonhos, com suas palavras e atos.

Então a lembrança da noite em que o garoto amou pela primeira vez tomo conta de sua mente, pode lembrar do sorriso, dos olhos e até mesmo do cheiro daquela mulher.

— Mas eu a perdi — disse o garoto

Nada permanece, o oposto de morte não é vida e sim nascimento, após a morte dela você nasceu para um novo caminho traçado pelos deuses, a tragédia e a realidade da vida composta pelo Cosmos.

— Ela possuía um sonho irreal não é mesmo? Você se lembra?

— Lembro...

— E qual era?

— Viver para sempre, ver o mundo desaparecer e só restar nós, nosso amor sendo a única coisa vital na poera estrelar que sobraria...

Essa mulher se chamou Vitória, o garoto já havia amado antes mas com ela foi diferente, se conheceram numa secção de autógrafos dos seus livros quando a garota aparece desajeitada com uma pilha para ele assinar, todas direcionadas a ela.

— Vejo que você se dedicou aos meus livros — disse o garoto

— Com certeza! Não há uma palavra sua que não me faça viajar e voar para outros mundos inimagináveis — Dizia isso com as bochechas vermelhas enquanto ajeitava seu óculos.

A lembrança desaparecia lentamente, por fim, ele então via as formas do corpo de Vitória desenhar-se em sua mente e olhos; seus longos cabelos negros, com sua pele tão branca quanto um floco de neve, seus lábios finos como papel e seus olhos verdes, que pareciam o reflexo da natureza nas águas de um lago em meio ao bosque.

Aos poucos retornava sua consciência novamente para aquele momento terrivelmente mágico, com a criatura sussurrando em sua ouvido:

— Então aceite! Viva para sempre para que a lembrança desse amor jamais suma junto com este mundo!

Ao falar isso as formas espalharam-se para todos os lados daquele abismo e em meio a escuridão mais uma memória veio há tona.

O Sol mal havia nascido mas as luzes de forma mansa se aproximavam do garoto que estava sentado no concreto frio de sua casa, bebia uma xícara de café preto e olhava em direção as nuvens, quando uma pequena borboleta de cor azul e amarelada suavemente pousa ao seu lado e em silêncio permanece, após algum tempo ele resolve toca-la e a mesma já se apresentava morta. O garoto se comoveu com aquilo e a segurou na mão, desejando de alguma forma fornecer vida para ela novamente, mas não possuía o poder para tal feito.

— Você sempre possuiu atributos compatíveis aos da minha raça

— Vocês são deuses, entidades, anjos e demônios, não sou nada disso!

— Você me faz ter esperança, nós deuses não somos nada mais que o ultimo fragmento de um sonho terno para a humanidade, existimos como um ultimo suspiro nas sombras e sonhos.

Poderíamos ficar aqui por toda eternidade, lhe mostraria todos os motivos para que você aceite a minha proposta, mas estamos ficando sem tempo, me diga; você aceita ou não?

Nesse momento mais coisas passavam pela cabeça do garoto, pensava nas palavras ditas pela mulher que amou, pela mãe que teve e por seus amigos que jamais o veriam novamente. Sobre como talvez pudesse mudar o mundo com esse poder ofertado, então ele diz:

— Eu aceito!

O garoto acorda e está de bruços em frente ao computador e uma história havia sido escrito nele, eram suas ultimas palavras antes que sumisse para sempre. Ele olhou para a sala de estar e viu a janela:

— Ah janela! — pensou

Saiu correndo e a saltou sem pensar duas vezes, enquanto caia a impressão de tempo parou e pode ver lentamente sua carne sumir e apenas os ossos permanecerem, lentamente tudo aquilo que o faz dele humano foi tomado para sempre, até que alcançou o chão e seu corpo esquelético virou cinzas que pairaram pelas ruas, sua nova existência o esperava em seus sonhos e o amor eterno seria sua última lembrança como humano.

— É assim que nós nascemos. Somos sentimentos e desejos eternizados, a luz e as sombras da humanidade, deuses, anjos ou demônios. Não importa designação. — Disse a criatura encapuzada que pairava em frente a janela.

Alexander Bertoti
Enviado por Alexander Bertoti em 15/05/2020
Reeditado em 15/05/2020
Código do texto: T6948175
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.