"Dialética" ao entardecer

Limpei a mesa no final da tarde. Havia chegado o momento de ficar defronte da verdade. O café já estava sendo preparado. Pelo pequeno barulho que chegava pela janela sabia-se que o movimento nas ruas era pequeno. Eu transitava a sala-cozinha com o cigarro na mão. Os fatos deveriam ser postos sobre a superfície que fora asseada. Chega de negações, pensei. O café pronto, deu-se início ao confronto comigo mesmo: eis a hora de integrar o que havia sofrido a cisão - mas isto é possível? A cada tragada , um gole de café e um breve suspirar. A taquicardia, penso eu, estava sob controle homeostático: unguento de um lado, excitação do outro. Nada mais próximo, artificialmente, do processo natural de diástole e sístole. Buscava-se, pois, regular o "desajustamento" provocado pelas imagens, aliás, pela ausência delas. Nesse espaço de tempo, fui ao exame de mim: estava em profundo delírio. Perguntei-me: por que não superas? A dialética logo firmou sua síntese: porque aindas precisa refletir com mais precisão sobre teus afetos, para posteriormente elaborar-se. Só cabe a ti , agora , sentir. Acolhe, então, a perda. Fiquei estagnado com meus pensamentos! ora, são por demais resignados. Ou fui eu que ainda não os compreendi? Mais um cigarro sob a mão, já menos trêmula. Continuo, pois, o diálogo de Sujeito para Sujeito com uma nova pergunta: mas por que foi tão fácil para ele deixar? A consciência se calou. Tenho para mim que ela mesma se assustou com a audácia proferida. Revoltada após sua pausa, ela disse: és tu o eixo que precisa de atenção e elaboração, por que se detém, insistentemente, com um outro? Nada se ganha com isso! Eu próprio envergonhara-me. Sem mais delongas, exausto de mim e em mim, me deitei. Prometi a este Eu que me habita firmar um compromisso de conciliação; mas com quê? Com quem? Comigo? E para que mesmo? Para ocupar-se de si numa busca posterior de autogoverno. A música que tocava de fundo me embalava mesmo com seu conteúdo paradoxal de fixação - por que nós tranquiliza o sofrimento cantado? Aos poucos fui me esquivando dos próprios pensamentos. De súbito levantei. Como a mesa ainda estava limpa, resolvi tomar mais um café, só que agora sozinho, pois que naquele momento já não mais cabia questionar ou retrucar (não? Não!). Era preciso, definitivamente, esperar que o processo de cicatrização da alma ocorresse. Não é assim com as defesas corporais? É preciso viver a agudeza da doença para só depois a ela combater com precisão. Os linfócitos da alma ainda estão em maturação. Eles logo hão de emergir ativos, e pôr fim à infecção. Por enquanto, é melhor deixar o veneno do Eros percorrer o sistema que este próprio Sujeito, que tanto se questiona, deixou deliberadamente que fosse injetado.

Abraão Rodrigues
Enviado por Abraão Rodrigues em 13/04/2020
Reeditado em 14/04/2020
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