UMA CERTA SENHORA ESTRANHA

   Eu vi aquela senhora caminhando lentamente, aparência frágil, semblante de tristeza, pelo menos no meu entendimento, carregava algumas sacolas, certamente tinha feito compras em um mercado próximo, voltava para casa onde descobri que morava sozinha. Podia ter mais ou menos uns sessenta e poucos anos. Eu já a tinha visto em outras ocasiões, porém nesse dia me detive nos seus passos, aquele caminhar não era mais o mesmo dos dias em que a vi por ali passar, apresentava uma certa dificuldade de locomoção, quase imperceptível aos olhos de quem não atinou para esse detalhe que nesse dia percebi. Eu senti um pesar profundo vendo aquela pobre senhora nessa situação, ninguém a visitava, se virava sozinha nos afazeres domésticos e a partir daí passei a observar melhor o seu desempenho diário, principalmente quando passava na frente da sua residência e a via sentada em uma velha cadeira de balanço com o olhar perdido no nada. Me perguntei se não tinha parentes, filhos, enfim alguém que lhe desse atenção, mas não encontrava resposta, nem os vizinhos sabiam dizer alguma coisa a seu respeito, só sabiam que havia comprado aquela casa há alguns anos e ali se estabelecera, pouco conversando sobre sua vida que também não interessava a ninguém.

    Certa manhã ela voltava do mercado, carregava umas sacolas como de costume, andar fragilizado, a dificuldade era evidente no seu caminhar. Estava eu ali na calçada propositadamente a sua espera, ia tentar lhe cumprimentar, oferecer um sorriso. Uma de suas sacolas caiu, foi o momento oportuno para lhe ajudar, já que estava bem próximo a mim. Fiz o gesto de cortesia, apanhei a sacola e coloquei em suas mãos dando-lhe um "bom dia" bem audível. Ela me olhou sem nada dizer ou esboçar qualquer reação simpática e seguiu em frente sem me agradecer. Achei estranho, mas entendi perfeitamente a sua situação, eu não poderia esperar por outra coisa diante do quadro que apresentava a velha senhora. Nesse mesmo dia procurei mais informações a respeito dela com um vizinho seu, seu nome era Magda e era só isso que sabia dizer. Realmente era uma vida muito estranha, essa senhora devia esconder algum passado, pensei com meus botões, algo de misterioso deve existir para justificar uma situação assim.

   Guardei isso comigo por vários dias, ela passava sempre pela rua que eu morava, as mesmas sacolas, o mesmo caminhar, a mesma tristeza em seu semblante. Não tive mais coragem de interceptar seus lentos passos, apenas a olhava na esperança de que virasse o rosto para que eu a cumprimentasse, mas isso não acontecia, estava sempre de cabeça baixa até sumir na esquina. Comecei a conversar comigo mesmo em pensamento, me perguntava sobre o porquê de uma vida assim, uma vida de solidão. Que segredo deve guardar essa senhora? Que sofrimento se abate sobre ela? Por que age dessa forma? Alguma doença a aflige? Algo de errado, com toda certeza, pairava sobre essa criatura de Deus, só que ninguém sabia o que era.

    À noite fui dormir tranqüilamente como de costume, sempre pensando na situação preocupante dessa senhora, que não a tinha visto nesse dia, o que estranhei, pois geralmente ela passava todos os dias na rua carregando suas sacolas. Mas tudo bem, pensei, amanhã ela deve passar e eu vou me afoitar a puxar conversa com ela. O sono demorou a chegar, fiquei na cama pensando na vida, tentando saber o que descobrir sobre essa pessoa que me parecia ser do bem e ser sofrida, talvez abandonada pelos filhos, coisas desse gênero. Tive o pressentimento de que sonharia com essa senhora e foi justamente o que aconteceu. No sonho ela se apresentava bem vistosa, alegre e não parecia ter a idade que tinha, o que me causou admiração. O local não foi possível detectar, mas era uma ampla sala com móveis e quadros na parede, era bem chic. Ela me pediu que sentasse e começou a contar uma história: sua vida foi pautada pelo luxo e pela arrogância, com a morte precoce do marido, em um acidente duvidoso, herdara todos os seus bens. Passara a fazer longas viagens em companhia de um rapaz que dizia ser seu amigo. Os filhos adolescentes (um casal, com 16 e 14 anos) foram entregues a uma tia que acabou criando-os tendo em vista a ausência constante da mãe que destinava poucos recursos para a sobrevivência deles. O resultado é que voltando de sua última viagem, sozinha, não dispunha de mais dinheiro, tendo que vender a casa onde os filhos moravam com a tia, sua irmã, para saldar um alto débito que contraíra. Com o que restou comprou uma pequena casa onde foi morar e abandonou suas crias. Vivendo sozinha acabou adoecendo e tendo alucinações noturnas. A irmã teve que viajar para longe e levou os sobrinhos consigo, ficando sem contato com mãe deles.

   Acordei sobressaltado no meio da noite com essa história que me foi contada em sonho, parecia realidade, tudo contado nos mínimos detalhes. Na manhã seguinte me dirigi ao local onde ela morava, já que não mais passou pela minha rua, estava decidido a saber informações a seu respeito. Chegando ao local fui surpreendido por algumas pessoas que eu conhecia me convidando a entrar na casa, fiquei sem saber o que dizer, me informaram que ela, d. Magda, queria falar comigo. Ainda sem noção do que estava acontecendo entrei e me deparei com ela na cama, pela primeira vez vi um sorriso naquele rosto magro da senhora que me estendeu a mão e me pediu para sentar em uma cadeira ao seu lado. Antes de chegar ao quarto observei que a sala era idêntica a sala do sonho que tive, os quadros ali estavam exatamente como os tinha visto em sonho. Ela pegou minha mão, me olhou bem nos olhos e disse: compreendeu agora tudo que lhe falei ontem? Em seguida deu seu último suspiro.

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 06/03/2020
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