158 - Cento e Cinquenta e Oito
Estava imóvel e só o pensamento se agitava para inventar palavras que apareciam nítidas e se atropelavam na boca. Falar, disse o anjo, é muito mais que escolher sons, é chamá-los a percorrer a boca inteira como se fosse um céu, uma trave, uma peneira das ideias ligadas ao que temos, somos ou inventamos. - Sim eu sei, disse-lhe em pensamento uma vez que a garganta continuava presa como se fosse de pedra. E desta vez o anjo não ouviu, não gostou do silêncio que para ele era uma fuga à conversa. Colocou a garrafa à boca e bebeu bastante. Parecia-me água vendo daqui. Outra hipótese seria aguardente de medronho mas a beber tanto, anjo ou não, ele cairia. E todas as perguntas do diálogo paravam no limite da boca fechada. Esperei e vi-o oscilar, mudar de cor, ficar capaz de ser morcego e sair para se esborrachar no pátio como um alado qualquer sem dom, como um homem bêbado. Não me sai o grito mas escuto-lhe sons à procura de palavras que não lhe saem por ter trocadas todas as ideias.