Quinta Expedição

O que presenciei há de ser dito, gritado aos quatro cantos, há de ser divulgado, denunciado, extirpado do anonimato profano, deve ser escrito para que alma alguma jamais descanse em ilusão: O Outro Mundo existe e se alimenta de nós. Lutaria para reaver a minha sanidade estivesse ela ao alcance, mas jaz enegrecida nos confins do abismo que encarou-me de volta, toda minha fé fora devorada no instante em que contemplei o Outro Mundo e suas formas.

Fui designado para liderar a quinta expedição de reconhecimento do território amazônico na América do Sul, acompanhado pelo meu fiel copiloto Torsten Kohler quem já me era íntimo desde o recrutamento na Força e nossa introdução à Luftwaffe em 36, juntos comandávamos um hidroplano Ar 196 apelidado de Franziska em homenagem à primeira cortesã do meu caro amigo, a que roubara o seu coração de modo que mulher alguma fora capaz de fazer. Apesar da ordem tardia e da invocação urgente que nos arrebatou da fria Dinamarca durante as breves e merecidas festividades acerca da operação bem sucedida e nos arremessou no coração verde e caloroso do mundo, estávamos conservadoramente otimistas com a campanha naquele jovem continente. Dos corajosos convocados, nossos irmãos predecessores, restou admiração e memória, embora houvesse larga lacuna onde cabia um abismo de incerteza nos relatórios, prevalecia a suspeita de que um poderoso sistema antiaéreo abatera as aeronaves, todas num ponto específico cujo contorno também parecia impossível. Em algum momento que falho em especificar, deixei-me subir à cabeça todas as medalhas e o título de Ás, dominado por uma coragem cega e entrega total do corpo e mente à causa, abençoado pelo fogo de um espírito jovem e cheio de vida que hoje sequer encontro os resquícios, restara apenas a mera especulação do homem que um dia fui, mas a verdade é que no controle de Franziska eu era imbatível, e onde todos os outros fracassaram, pelo Führer, eu sucederia.

Naquela tarde o meu velho companheiro Kohler estava particularmente inquieto, andava em círculos na popa do navio, argumentava e retrucava num monólogo irritado e deveras gesticulado, sem medo de atrair a atenção alheia, o medo era apenas meu, que pelo receio de que o meu companheiro fosse acusado de ter perdido a sanidade, aproximei-me depressa a fim de servir de ouvinte aos seus balbucios, porém, distante das minhas expectativas, ouvi-lo tornou-me ainda mais confuso, sequer fui capaz de identificar o idioma que ele falava, arriscaria dizer que era uma mistura da língua local, mas era como se o seu alemão fosse filtrado, jamais o presenciei daquela maneira. Aguardei-o perceber minha presença e de alguma forma voltar a si, no entanto, depois de cravar seus olhos azuis arregalados em mim por longos segundos, ele sacudiu a cabeça e retornou àquela loucura. Tentei chamar sua atenção, sem sucesso. Toda resposta que obtive foi um pequeno bilhete que ele retirou do bolso e entregou-me. No papel havia um rabisco de esboço de um desenho triangular, sob o triângulo desciam pequenos traços de uma simetria intrigante, mas ainda nada que fizesse algum sentido. Uma vez que a atenção estava dispersa, agarrei-o pelo braço, cansado da sua loucura, o sacudi até despertá-lo à força do transe em que se encontrava. Kohler se desvencilhou dos meus braços, irritadiço e fechou os olhos, ao abri-los foi como reaver o meu antigo companheiro de sempre, apenas levemente distraído. Mostrei-lhe o papel que me entregou, mas ele não soube explicar o desenho ou como ele foi parar em seu bolso, descreveu as últimas horas como um sonho confuso e ensolarado. Concluí que o sol escaldante do território sul-americano não lhe fizera bem, aproveitei para compartilhar o mesmo incômodo pelo calor. Durante a última refeição antes do início da operação, Kohler estava falante como costumeiro, evidenciando todo seu entusiasmo para com a missão iminente, revisamos a estratégia e medidas de cautela e rumamos à pista de decolagem.

Franziska erguia-se aos céus cortando a espessa neblina, firme e gloriosa ave metálica rugindo sua força, seu trepidar era um dos meus sons favoritos, a noite era minha enquanto pilotava. Sobrevoávamos o litoral amazônico há poucos minutos, e embora fosse clara a missão, sem permitir tornei-me distraído pelo reflexo inatural do rio que serpenteava cortando a densa floresta negra a quase trinta mil pés. Salvo pelo som da voz de Kohler sentado no assento traseiro, retomei minha atenção ao painel e horizonte, aproximávamos do ponto onde nenhum outro passara, a ausência de qualquer esboço ofensivo convertia-se numa tensão indescritível que se alastrava a cada segundo corrido. Meu velho amigo calou-se e seu silêncio me perturbava, perguntei-lhe o tempo que nos restava, ainda que soubesse a resposta, apenas precisava ouvi-lo responder, mas sua resposta não veio, mesmo quando repeti a pergunta falhada em voz trêmula. Senti o toque terno de sua mão em meu ombro esquerdo e virei-me num reflexo, o que vi tirou-me o fôlego no mesmo instante. Faltam-me palavras para descrever com fidelidade aquilo que roubou minha voz, aquilo que desafia a compreensão humana, a representação do momento onde a realidade é distorcida: O portal para outro lugar era um espiral de corpos celestes bailando como nuvens de flocos brilhantes no negrume desolador que se estendia para o infinito e, noutro momento que atingiu-me como um projétil certeiro, fui engolido pela escuridão. Já não escutava o trepidar acalentador de Franziska, tampouco sentia a presença do meu fiel companheiro. Forcei os olhos, mas nada pude ver, temi ter perdido o dom da visão, gritei desesperadamente pelo meu amigo, quando já em profundo horror, percebi que minha voz também fora roubada de mim, mesmo os ecos do meu desespero foram tragados pela noite eterna, debati-me na cabine, no entanto meu corpo rodopiou como se estivesse submerso na água, mas sem densidade, e então veio o frio. Aquele maldito frio que jamais experimentei, implacável, envolveu-me por completo, senti-me uma presa que se recusa a morrer nas entranhas de uma besta glacial. E ainda que não enxergasse, eu o vi, sua silhueta colossal coberta pelo manto de estrelas negras, seus olhos vazios que me encaravam com desprezo, e do manto surgiram seus dedos escuros que me envolveram e me arremessaram para além da borda do mundo. O que vi do outro lado jamais poderia ser descrito com exatidão, pois até o dia presente luto contra as lembranças impregnadas que não me deixam dormir, devolvem-me àquela maldita noite em que perdi tudo o que me era mais precioso.

Abençoado seria se o fim do meu tormento fosse a minha queda, não obstante a agonia que me atirou ao chão foi a mesma com a qual acordei, ofegante como um náufrago emergindo das ondas na praia, devolvido à vida apenas para arrepender-se de estar vivo. Escutei o chacoalhar das árvores sobre minha cabeça que girava num bailado nauseante, a única imagem fixa era o meu próprio corpo, um alívio repentino tomou-me pouco antes de ser guilhotinado pelo horror, não sentia meus braços, as cordas do paraquedas cortavam o fluxo sanguíneo entrelaçando ambos, atando-me pendurado num tronco de uma árvore titânica próximo ao cume. Ao longe vislumbrei o rastro da fumaça que se erguia aos céus acima do clarão, concluí que Franziska queimava em piores condições do que eu, podia somente esperar que o meu caro amigo houvesse encontrado um destino melhor, embora as chances fossem mínimas. Pensei em soltar um grito, mas temi denunciar aos inimigos minha exata localização, guardei-o na garganta junto com a dor e terror que tentava engolir. Longe das luzes da cidade o céu noturno estrelado costumava trazer-me paz, no entanto cada vez que levantava os olhos, receava demorar-me o suficiente para vê-lo se materializar outra vez, aquele ser, uma força maior, temia estar outra vez envolto nos seus dedos gélidos e mortais, ser atirado para além do meu mundo, como uma formiga assoprada para longe. Aquela noite pareceu eterna, o tempo arrastando-se castigava a paciência de um desgraçado que sequer podia usar os braços, não obstante fantasiei e calculei a minha chance de sobrevivência após – miraculosamente – sacar o meu canivete na bota sob a calça e cortar as cordas do paraquedas que livrou-me de um fim súbito para entregar-me o presente de viver em agonia por mais algumas horas. A sensação de estar em solo inimigo não permitia-me desvencilhar da ansiedade que me consumia, as horas arrastavam-se, mas posso jurar que naquele lugar jamais amanheceria, não importa o quão eu resistisse. Os insetos eram outra provação incrível a minha resiliência decadente que se esvaía a cada picada, cada mordida, seus zumbidos infernais penetravam-me os tímpanos como setas malignas de tortura, suas asas frenéticas em luta para livrar-se do suor que os grudavam na minha face causavam-me arrepios de agonia. Após horas de agonia incessante, escutei o que a primeira impressão pareceu-se com o trepidar de hélices, já podia imaginar o comandante Friedmann pilotando ao meu encontro, jamais me deixaria para trás, era digno de sua estima e prometido a sua irmã, em pouco tempo seríamos mais do que meros irmãos de farda. Debruçando-me na paz de um devaneio e outro sobrevivi às horas, no entanto o trepidar era cada vez menos familiar, eu, que identificava os modelos pelo barulho que faziam tão distantes... Submerso naquela questão que menos frívola para mim era no momento do que é agora, não percebi o intensificar do maldito barulho que já sondava sobre a abóbada de folhas, afastando-nas para que eu pudesse contemplar aquele que sobrevoava o mundo como se a ele tudo pertencesse, um inseto maligno, não, o deus inseto maligno, titânico, chacoalhando suas asas de libélula, tinha um formato familiar, humanoide, grotesco, agitava suas pinças de foice ao devorar uma carcaça que levava à boca que se abria na horizontal, repleta de estacas sob duas maiores que se fechavam como um poderoso alicate. Senti o gotejar gélido no rosto e então o fétido odor da morte, o rubor da visão confirmava o que temia, sangue fresco, o inseto deleitava-se de uma caça bem sucedida. Desejei profundamente que fosse o bastante para satisfazê-lo, mas o horror de permanecer naquele lugar fez-me questionar se era válido sobreviver e até vagar num mundo distante e esquecido por deus.

Minha mente sucumbiu ao inimaginável, talvez um colapso tenha dado-me trégua ao sofrimento, talvez a desidratação. O fato é que ao acordar encontrei-me repousado num leito destinado àqueles que sobreviveram por pouco a condições adversas em operações de guerra, reconheci de imediato porque já havia visitado o local por espontânea vontade, embora sempre me convencesse de que jamais pertenceria a ele. Meu braço esquerdo foi amputado e pouco é dito sobre o estado em que encontraram o corpo do meu companheiro Kohler, irônica tentativa de poupar-me da verdade, quando sou o único que verdadeiramente a conhece. Tentei convencê-los de tudo o que vi, mas fui rotulado como louco e após, fui ignorado, hoje a minha existência não trata-se muito mais do que mera formalidade. Antes de partir eu vos deixo a mensagem de desesperança, quando adentrar o Outro Mundo, ele o adentrará, e subitamente deixará de fazer parte do mundo que conhecemos, exilado entre ambos, deslocado anseio pelo conforto da morte. Adeus, eu não pertenço a lugar algum.

Álefe
Enviado por Álefe em 11/12/2019
Reeditado em 28/02/2020
Código do texto: T6816677
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