blood brothers

Éramos só eu e meu querido irmão, eu sendo o caçula por apenas contáveis minutos. Se perguntar a mim, particularmente pouco recordo-me sobre a nossa infância antes do trágico acidente que deixou-nos à mercê do estado e entregues a um barato orfanato religioso, até a nossa saída expelidos rumo à uma nova vida ainda mais dificultosa. O pão seco e água muitas vezes com gosto estranho que antes achávamos insustentável vindo das freiras agora teria que ser trabalhado para se conseguir, e preferimos apelar pelo caminho mais fácil, roubando o que nossas fomes coagiam. Meu irmão, por outro lado, desejava uma vida corretamente sustentável, até que finalmente conseguiu o seu primeiro trabalho em uma grande serraria. Eu, porém, ainda optei por roubar mais. Ele nunca julgou a mim, mas eu sabia que logo mudaria também, e por ele.

Comemoramos o nosso primeiro aniversário nessa nova vida sob uma tenda rente à um lago ao qual acampávamos, mas o nosso próximo aniversário comemoraríamos sob um teto razoável pelo qual ele e eu alugaríamos e dividiríamos com o nosso suado ganho. Nos anos a vir, meu irmão seria abençoado por sua sagacidade singular sendo promovido à gerência. Eu, por outro lado, continuaria trabalhando naquele que um dia fora o seu cargo, e não me importava. Nosso teto alugado, tornou-se um novo e melhor teto agora comprado. Aprendemos a sorrir mais uma vez o que apagou-se ainda em nossa infância.

Nunca esquecerei a madrugada na qual acordei aterrorizado com o início de gritos soluçados no outro cômodo. Tropecei-me até lá temerosamente apavorado, e deparei-me com meu irmão contorcendo-se em prantos afeminados de dor ao piso. Tentei reerguê-lo à cama, e seus gritos ensurdeciam-me. Imediatamente solicitei a um médico de plantão. Seguraram à força meu irmão enquanto o médico injetava uma droga para acalmá-lo e eu tremulava no canto ao assisti-lo desfalecer-se envolto em suor e as veias voluptuosas em seu pescoço decorrente da dor que fosse que ele sentia. Quando o cujo doutor reergueu-se e fitou a mim com um olhar vidrado e a boca entreaberta, eu soube, ali, que nossas vidas nunca mais seriam como foram até aquela noite.

Quando ouve-se falar de doenças raras que acometem com nenhum diagnóstico ainda fundado, normalmente ignoramos, pois o que não há solução soa incabível em nossas já dificultosas realidades. Meu amado irmão, de todas as pessoas, havia sido violado por uma dessas doenças. Seus nervos não mais o sustentavam sobre seus pés. Suas dores o acometiam diariamente, e num lapso de segundos, seu corpo jogava-no a um inferno debatente de gritos. As drogas intravenosas diminuíam o tempo, mas não o ataque sobre o seu ser, e o cujo ataque perfurava-me a cada dia mais fundo. Meu irmão tornou-se um inválido numa cama e apoiado em muletas, e eu tive de tornar-me forte o suficiente em pé para dois, tanto para ele quanto para meu trabalho que sozinho teria de nos manter. Embora ele ficasse sob cuidados de uma agente cuidadora durante minha ausência, distante, preocupava-me mais ainda, pois eu sentia o nosso cordão umbilical menos visível. Os momentos de calmaria traziam-me uma nostalgia outonal de luto futuro, e os de tormento ecoavam a sirene de que a cuja nostalgia aproximava-se mais e mais.

Quando o inverno foi-se embora, a primavera trouxe-nos um desabrochar risonho do que não mais acreditávamos. Presentei-o com um rádio para ouvir enquanto eu estivesse fora, e presenteei-me emocionalmente ao descobrir junto a ele que a música lhe trazia de volta um resquício de sua vivacidade perdida. Naquela tarde morna e alaranjada, nos despedimos do dia cantando a uma interpretação no cujo rádio de Ave Maria que era uma das únicas coisas que gostávamos no velho orfanato quando ensaiávamos para as missas de Domingo. Os olhos de meu irmão risonharam em lágrimas para mim, e eu não contive-me, caindo em desalento choroso ao seu peito deitado. A vida presenteou-nos com um vislumbre esperançoso de que não estávamos fadados. Aquele rádio tornou-se a muleta de meu irmão e um acalento medicamentoso em suas veias. Ele ouvia-o durante todo o dia e toda a noite, todos os dias, e os ecos pela casa tornaram-se como o ar para mim e a ele. Em seus ataques, ele pedia gritante a mim ou a cuidadora para que aumentasse o volume ao máximo. Seus clamores doloridos mesclavam-se à música e eu acompanhava-o tentando cantarolar o coro religioso que o amparava. Havia esperança na dor e na resiliência. Houve.

Numa tarde, enquanto trabalhava ansioso em retornar para casa e juntar-me ao meu irmão para cantarmos mais uma vez, recebo uma ligação de nossa cuidadora nervosamente tropeçando em suas palavras ao relatar que o meu irmão havia tido um ataque e após não mais respondia. Meu irmão, por fim, desfaleceu-se num coma ainda vivo só graças a aparelhagens, e eu culminei-me à desesperança pavorosa permanente. Não bastasse as anomalias em torno do caso do meu irmão, descobrimos que enquanto o rádio estava ligado, suas ondas cerebrais e cardíacas reagiam positivamente, mas, se desligado, decaíam. A vida de meu irmão interligou-se àquele rádio. Todos os dias eu retornava para casa do trabalho, sentava-me ao seu lado, apanhava sua frágil mão que um dia foi fortificadamente áspera, e cantava para ele a minha própria interpretação de Ave Maria. Suas ondas na pequena tela azul elétrica dançavam-se avivamente respondendo a mim, e eu sabia que o nosso cordão umbilical era mais forte que tudo.

A estação de chuvas prolongadas e traiçoeiras alertava-se aos céus no podar daquele último dia da semana ao qual eu trabalharia ante aos feriados prolongados festivos em minha cidadezinha, e eu planejava após o trabalho ir comprar novos discos para cantarolar junto do meu irmão durante os dias a vir. Retornei para casa após o trabalho, cumpri o meu hábito diário com o meu querido irmão, beijei-lhe a suave bochecha e deixei o rádio a entoar pelos cômodos enquanto rumava ruela abaixo rumo ao centro de nossa cidadela. O horizonte azuladamente obscuro e cercado com uma furtiva ventania rasa anunciava a predição local sobre possíveis tempestades. Os postes de luz já estavam acesos antes do sol se pôr. Agilizei os meus passos, quando abruptamente paralisei-me por um raio secamente descomunal violando aos céus e tendo como alvo a central de energia de nossa pequenina cidade, culminando numa imediata explosão, e conseguinte de estalos elétricos faiscantes em torno das ruas. Decaí-me ao chão, eletricamente atemorizado, ao que os postes à minha frente estatelavam-se eletrizadamente um a um. Fitei apavorado à minha retaguarda o caminho de volta para casa onde meu irmão estava só e interligado à aparelhos e ao rádio. Tentei reerguer-me violentamente e o poste acima de mim impediu-me explodidamente. Bradei aos malditos céus escuros e à cuja carreira eletrizada que rumava-se até nossa casa ameaçando interruptivelmente apagar ao nosso cordão umbilical e, ao segundo que a luz do poste à minha frente implodiu-se em faíscas, pude ver ao Seu denso manto obscuro e à Sua carcaça macabramente arenosa vagando como o ar gélido furtivo que soprava os céus e na faísca explodida eu vi a Seu brilho de Sua lâmina que ceifa rumando-se para nosso lar para buscar o que tarda mas é Seu.

Exclamei-me gritadamente pidante para que Ela levasse a mim ao invés de meu inestimável e único laço de vida que ainda restava-me, e apenas restou-me uma torrente chuvosa abrupta de céus áridos mesclando-se ao meu luto lacrimal e ao corte de nosso cordão umbilical eletrizado.

Decaí-me desfalecidamente ao cimento duramente encharcado e ao vasto breu solitário de um só homem.

Não saberia dizer qual cortou-se primeiramente, se o rádio ou os aparelhos que continham a vida de meu irmão. Nunca mais liguei um rádio novamente, mas enquanto observo neste exato momento, um ano depois, em nossa varanda o horizonte azuladamente obscuro e trovoado anunciando o retorno daquela remessa de tempestades a me circundar, eu canto melancolicamente ao vento furtivo nossa Ave Maria uma vez mais, esperançoso de que meu irmão ouça e venha me buscar.

ilLoham
Enviado por ilLoham em 24/10/2019
Reeditado em 01/11/2023
Código do texto: T6777661
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