Um trecho da carta de Miss Amber

(...)

Eu comeria uma caixa inteira do chocolate para sentir o que senti quando o comi pela primeira vez.

Essa voracidade do meu pensamento me pegou fora de guarda. Mas sentir o prazer, o frenesi que senti enquanto mastigava aquele primeiro pedaço de doce era tudo o que importava para meu cérebro naquele momento.

Só de pensar que, talvez, estivesse viciada naquele gosto e textura me trazia uma enorme dose de vergonha e medo.

Mas, por ora, foquemos no que realmente importa: o chocolate.

Não tinha nada de incomum nele, era só mais uma caixa de chocolate de uma marca bem conhecida, inclusive por mim. Sua cor azul e seu logo indiscutivelmente famoso já me trouxeram uma alegria aos meus olhos, afinal, adoro chocolate e essa marca não é a das mais baratas. Nada de incomum, de fato.

Porém, ao ouvir o som do embrulho rasgando e farfalhando, algo de diferente começou a acontecer dentro de meu peito. Talvez veio das minhas entranhas, como uma espécie de aviso. Ignorei completamente e prossegui desembrulhando o chocolate que havia ganhado do meu colega de quarto como agradecimento por eu ter lavado a louça.

Quando enfim havia desembrulhado a caixa e visto o chocolate, algo dentro de mim mudou. Não foi somente um sentimento, como anteriormente, mas mais como uma concretização. Foram minhas entranhas dizendo “você foi longe demais e logo se arrependerá”. Novamente, ignorei, se é que eu sequer ouvi.

Toquei no chocolate. Todos os pelos dos meus braços arrepiaram. A sensação de sentir o vento batendo na cara veio em ondas, como um zumbido correndo em círculos. Tudo de uma vez, as paredes das minhas tripas se moveram, racharam, rasgaram. Agora sim sabia que tinha ido longe demais. Eu só saberia o porquê depois, quando fosse tarde demais.

Ao trazer o chocolate para minha boca, eu senti o Destino dando risada de mim, o sussurro de escárnio do Oráculo ecoando de dentro de mim.

No primeiro toque do doce em minha língua, eu revirei os olhos de prazer. Minha boca inundou de saliva. Eu queria mais. Eu precisava demais. O frenesi era tamanho que me deu vontade de grunhir. E na primeira mordida, foi como se eu tivesse morrido e nascido ao mesmo tempo. Aquela leve incerteza e loucura da incerteza de saber se seu coração está realmente batendo. A falha batida, a pontada flechada do peito e a adrenalina produzida por esse prazer. Vi branco, pois via tudo. Vi minha vida de outro ponto e minha mor de outro. Tudo fazia sentido e ao mesmo tempo não sabia nem quem eu era mais. Milésimos de segundo. Isso foi tudo em milésimos de segundo.

Não importa mais, de qualquer jeito. O destino havia sido selado e tudo já acabou. Mas até agora me é difícil descrever aquele prazer, o que eu sinto que se aproxime mais de um orgasmo.

Parando para pensar, talvez seja melhor eu nem contar o que aconteceu depois. Não acho que você sequer vá acreditar na história, mesmo eu sabendo que é tudo verdade. Toda essa tentativa de descrever cada emoção e acontecimento da forma mais genuína e integral possível foi em vão. Não... sigamos. Já estamos aqui. Cabe a você julgue a chance do narrado acontecer.

Eu precisava de mais. O chocolate me consumiu. E eu já estava morta, não fisicamente, mas a pessoa que eu conhecia como “eu” já não existia mais. Em transe, ou em morte, eu comi, ou melhor, destruí aquela caixa inteira de chocolate em questão de poucos minutos. E, não suficiente, eu já me encontrava em abstinência. Mecanicamente, tomada pela euforia, me levantei, peguei minha carteira e saí do meu apartamento, sem dirigir uma palavra ao meu colega de quarto que perguntava para onde eu iria. Nem eu sabia, só seguia os passos dos meus pés, levados pelo desejo.

Me deparei na loja de conveniência mais próxima. Depois no posto de gasolina, depois no mercado. Assim até eu coletar mais de dezena de sacolas de plástico, todas cheias de embalagem do mesmo chocolate.

Eu não consigo me recordar como – porque, afinal, eu não sou mais eu por dizer, não sei onde minha alma foi parar –, mas acordei numa sala de hospital, rodeada não somente por médicos e enfermeiros, mas por policiais também. E... bom, você já sabe o resto da história, e, se não se recorda, todos os documentos legais já se encontram sob domínio público.

Novamente, me perdoe por ter matado sua família, amigo. Tentei descrever ao máximo tudo o que senti, ou pelo menos tudo o que me lembro. Talvez dê para deduzir o nível de histeria, loucura e doença em que me encontrava e espero que me perdoe. Peço desculpas também se me prolonguei nessa carta, ando entediada na prisão e fiquei criativa no meu tempo isolada.

Com amor,

T. Amber.