ÍMPETO NONSENSE

Num ímpeto de extremo desvario em uma cinzenta manhã de domingo, me vi entrando literalmente no ralo da pia da cozinha e em seguida deslizando pelo tubo malcheiroso e condutor de todos os líquidos impuros formados após a higiene das coisas. Esse fato desconstituiu de forma mágica a minha essência humana, me transformando logo em uma espécie de rebotalho da sociedade a que eu pertencia há pouco.

Na medida em que fui descendo tubo abaixo, me aproximando do que desconhecia, paradoxalmente, fui, cada vez mais e inconscientemente, sendo integrado a uma nova realidade constituída: àquela sopa ácida, fétida e borbulhante, acumulada no fundo da caixa de gordura do sistema de esgotamento sanitário do prédio em que eu morava.

— Agora sou marginal! — eu diria, se naquele momento ainda me ocorresse um padrão de existência... qualquer tipo de existência; humana, por exemplo. Mas... o que seria, agora, existência?! — eu não saberia definir existência, pelo menos, não na condição em que me encontrava: em forma de sopa.

Eu nunca fui flor que se cheirasse, sempre fui consciente disso, mas de imediato pude perceber que tal tipo de constatação não importava mais, pois eu já me havia tornado membro da imensa legião de coliformes fecais transubstanciados naquela sopa. Inclusive, fui logo assimilando um grande e solidário espírito de corporação que contagiava todos os presentes: havia entre eles um imenso sentimento de pertencimento, de inclusão, enfim, de unidade na legião. Logo, eu estava ali, mas não estava sozinho; todos éramos, juntos, a sopa malcheirosa.

Durante todo o tempo que durou o meu desvario — hipotéticos seis meses —, o ritmo da assepsia das coisas do lugar que eu passei a me referir como “o plano superior” foi dando o tom: se havia mais água limpa do que água suja descendo lá de cima pelo tubo, a sopa ficava inconsistente, rala, desconfigurada e, consequentemente, o nosso sentimento era, na maioria das vezes, de desagregação. Entretanto, se, por outro lado, havia mais água suja descendo, a sopa encorpava, ficava pastosa e com um aspecto brilhante. Essa era a nossa zona de conforto.

Finalmente, após decorrido esse suposto período, em um determinado dia a caixa de gordura sofreu uma grande intervenção: do nada, um grande tubo sugador de sopa foi enfiado no nosso espaço comunitário e arrastou para dentro de um outro reservatório gigantesco milhões de colônias de indivíduos nossos. Em seguida, como se já não bastasse, muita água limpa e produtos de limpeza foram jogados repetidas vezes sobre toda a população remanescente que, combalida, foi logo desaparecendo no meio das grandes bolhas de sabão formadas por conta de toda a escovação que veio em seguida.

Depois de toda aquela faxina, apenas eu sobrevivi — talvez para poder sustentar essa narrativa, não tenho certeza disso —, mas posso avaliar agora, passado o meu desvario, que esse desfecho representou, sim, não há dúvida, a grande derrocada, o esfacelamento de uma nação que se encontrava em estado putrefato. Mas, principalmente, também representou o fim de uma colônia de indivíduos que, mesmo na merda, era solidária. A propósito, acabei lembrando da célebre frase, atribuída ao grande jornalista e escritor Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer.”

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 28/09/2019
Reeditado em 18/01/2023
Código do texto: T6756393
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