ESTA PROFISSÃO JÁ NÃO É O QUE ERA

Era o que ela pensava quando atravessou o portão da escola e em vez de ser saudada com um “Bom Dia, Srª Drª” como nos velhos tempos foi olhada de revés pelo homem que fazia de porteiro e que lhe rosnou um cumprimento mal disfarçado.

Ela não quis saber, recusou-se a ser derrotada mal chegava para começar um novo dia e abanou a sua farta cabeleira ruiva que teria talvez inspirado os alunos a apelidarem-na de “Palhaça" e "Anacleta”,olhando para o pátio de entrada.Deu com os olhos numa encarregada de educação enfurecida, uma mulher baixa, atarracada, que se saracoteava, de mãos á cintura vociferando para o vento “Não saio daqui , sem ela ( por certo a directora do estabelecimento) me receber”.

Apreensiva Florípes abriu a porta que anunciava “Entrada dos professores” como se fosse “Entrada dos Artistas” num cabaret mal frequentado, respirou fundo e percorreu o corredor, passando por várias salas de aula, todas mais ou menos em crise.

Numa os alunos guinchavam como macacos e não havia vista do professor que gesticulava minúsculo atrás de um magote de matulões musculados…noutra havia umas meninas que escoiceavam como éguas junto à parede não se percebia bem porquê…e numa terceira, alguns jovens espojavam-se nas carteiras como reses a enxotarem moscas varejeiras.

“Estas miúdas das escolas secundárias…”ouviu alguém cantarolar em fundo.

Ela desceu abruptamente as escadas para a cave e entrou na sala de rompante sem a turma dar por isso.Afiou a voz num grave sustenido e deixou escapar uma fífia pouco audível:

- É difícil ensinar Arte num sítio como este.

-Bom Dia, professora, também para si! – disse uma rapariga, em tom de provocação.

-Hoje, antes de começarmos a aula, vou ter que vos pedir um favor.Têm que ajudar a levar o meu armário com o material para o andar de cima.

- Mas professora aquele “caixão” pesa chumbo.

- Não quero saber.Se forem vários a fazer força, não custa nada…

Armou-se um rebuliço.Gritos, insultos, exclamações.Um homem gordíssimo a transpirar, vermelho como um pimentão, assomou à porta:

- Mas o que é que se passa com estes?Parece que chegou o fim de mundo.

-Ah Venceslau,colega, desculpe.É só um minuto, enquanto se leva o armário lá para cima.

Venceslau bufou consternado e desapareceu como que sugado por uma força invisível.

Iniciaram-se as manobras.Mais gritos, gargalhadas e choro.Floripes nervosíssima atrás, a incitar os alunos que faziam de carregadores:

-Virem agora para a direita.Não vêem que a escada faz uma curva?

- Eu não vejo nada professora e o Ernesto está a pisar-me…Irra!Arre!Bruto!

- Eu também não vejo nada, professora.Caraças!

-Calem-se malandros, calem-se – desgrenhada, Floripes, antiga professora de Educação Visual e Tecnológica tentava em vão manter o controle.

Foi então que ela viu tudo preto porque alguém lhe atirou certamente uma almofada à cara. Soltou um pequeno grito de aflição e mal tornou a ver, divisou a cara alegre e divertida do Manuel que a fitava cheio de curiosidade. Não se conteve e pregou-lhe uma bofetada ruidosa.

- Não fui eu.Eu não fiz nada!E vou fazer queixa ao meu pai.

O armário ficou encravado,torto no meio do patamar.

- Preciso de passar – berrou Venceslau, o professor de Geografia obeso que apareceu novamente, de súbito atrás dela.

- Impossível.Não vê?Há um engarrafamento. As escadas estão intransitáveis.- retorquiu

O outro, furibundo, ainda largou uma obscenidade irrepetível e com ar sinistro desapareceu para tentar saltar pela janela da sala de aula onde ela tinha estado.

- Manuel, empreste-me o seu telemóvel.É urgente!

-Urgente é a chamada que vou fazer ao meu pai com quem vai ter que se haver.Para sua informação, professora, ele tem uma banca no mercado ao pé da escola e vem com o facalhão com que extrai as guelras do peixe falar consigo.

Ela ficou transida, completamente em pânico, deu empurrões aos alunos, furou entre o espaço que restava entre o corrimão e o armário entalado e foi a correr, a correr pelos edifícios até ao gabinete da Diretora, uma criatura esguia de óculos de lentes muito grossas e que se encontrava escondida, de gatas atrás da secretária.

- Floripes, deite-se no chão e não fale.Estamos barricadas, ameaçadas de morte por uma encarregada de educação que está no meio do pátio, de mãos à cintura e quer irromper pela Direção dentro porque diz querer vingar-se de uma falta de castigo que marcaram ao filho.Parece que o rapaz só tinha cuspido no quadro durante a aula de Matemática.

Floripes a rastejar, esgueirou-se para fora de zona e atravessou os pavilhões ofegante, descontrolada, de regresso ao vão de escada onde o armário continuava a obstruir a passagem.Uma bola vinda não se sabe de onde veio bater-lhe aos pés.Ela sufocou um ataque de raiva e em vez disso reagiu com um pontapé desajeitado, tão desajeitado que o seu sapato de salto alto voou e um miúdo que ia a passar pegou-lhe e atirou-o pela janela.

Floripes então trágica e grave estancou e exasperada clamou:

- Socorro!Tirem-me daqui.Internem-me numa casa de saúde!

Um grande grupo de alunos vindos de vários pontos, acorreu ao chamamento e ficou durante segundos sem ação, a observar a professora Floripes meia descalça e ligeiramente histérica até que um rapaz comentou convictamente:

-Eh pá,meu, que grande cena!Vou filmar,mano.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 18/07/2019
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