ATRÁS, VINHA O CADÁVER
Marisa ia preocupada. Uns minutos gastos a mais no banho, telefonema inesperado, tudo contribuiu para que saísse atrasada pro trabalho. Por sorte, vinha descontando bem no trânsito e já estava segura de recuperar o tempo perdido quando o carro da polícia passou por ela e fez sinal de que deveria encostar. Pronto! Além do atraso, do aborrecimento, multa a pagar!
Nada se passou como ela previa, no entanto. O guarda apenas se aproximou e explicou, com a maior calma, que o cadáver na mala do veículo estava com a mão para fora. Pediu-lhe que abrisse o compartimento e gentilmente se dispôs a acomodar o defunto da maneira devida, para que ela prosseguisse viagem com segurança. Marisa assistiu à inusitada cena com idêntica dose de calma, como se tratasse de algo absolutamente normal e corriqueiro. Quando o policial afirmou, sorridente, que podia seguir, ela agradeceu (ao menos, pensou que sim) e repôs-se em marcha, com a única dúvida se chegaria ao escritório a tempo.
Conseguiu, distribuindo os usuais bons-dias aos colegas e mergulhando nos papeis do dia. Somente ao deixar a empresa, no final do expediente, é que voltou a pensar no tal cadáver. A primeira vez que fora alertada da presença do corpo atrás de si ocorrera na infância, quando ela cursou catecismo por breve período e fazia sua confissão ao pároco da igreja do bairro.
Aquele ser inanimado reaparecera em variadas ocasiões sem que ela mesma se desse conta. Na adolescência, mãe e pai, até seus irmãos, observavam, às vezes, a presença do tipo quando ela preparava os deveres do colégio, saía do banho ou aprontava-se para dormir. Conferia menor importância ao fato quase sempre. Suas aflições ocasionais não abriam espaço para ocupar-se de cadáveres. Francamente, havia mais no que pensar. Ao tornar-se adulta, descartou a hipótese de alucinação com absolutas firmeza e segurança, pois ela se considerava pessoa inteligente, comedida e equilibrada. Estresse, doidice, nada disso tinha vez em sua agenda. Melhor esquecer a reaparição e retornar sua atenção para os papeis sobre a mesa no escritório.
Dias depois, numa festa, conversava com sua amiga Joana sobre o desagradável de ter que atender a convites de anfitriões como o daquela noite, de quem corriam sérias suspeitas de praticar negócios escusos. Há muito se dizia que o tipo se envolvia com o tráfico de drogas e até mesmo com o comércio clandestino de órgãos humanos. Por ser cliente importante de seu empregador, Marisa era obrigada, assim como Joana, a vir a essas festas, nas quais, para piorar as circunstâncias, comiam e bebiam maravilhosamente bem, além de cruzar com figuras interessantes, como aquele executivo inglês que visitava o Brasil periodicamente e com quem ela ficara por umas semanas.
No meio da troca de comentários envenenados sobre as atividades do anfitrião, Joana repentinamente perguntou a Marisa se o cadáver em suas costas não era pesado. Ante a pergunta, ela sentiu que, de fato, o corpo inerte começava a cansá-la e que deveria ser hora de voltar pra casa. Com toda naturalidade, solicitou à amiga que a ajudasse a acomodar melhor o defunto para que ela pudesse dirigir seu automóvel.
Na manhã seguinte, enquanto percorria seu trajeto para o trabalho, lembrou-se de que mais uma vez se esquecera de observar o cadáver. Era jovem? Velho? Encontrava-se em bom estado? Apresentava hematoma ou sinal da causa mortis? Na verdade, nem sabia onde o largara no apartamento. Que descuido! Logo ela, que se julgava tão organizada em todos os seus afazeres.
O dia foi extenuante no escritório. O chefe da seção chamava seus colaboradores de cinco em cinco minutos (ou de seis em seis, para não parecer exagero), tentando encontrar solução jurídica para o encaminhamento de importante contrato. Reunião pra cá, conversa pra lá, mil telefonemas e mensagens de WhatsApp, até que o Armando perguntou se o cadáver na mesa do chefe não estava cobrindo o último relatório. Marisa ficou momentaneamente incomodada, ao acreditar fosse seu o cadáver em questão. Tranquilizou-se após perceber que não. Olhando em direção à sua mesa, viu que o corpo inerte que lhe dizia respeito permanecia encostado na parede detrás da cadeira.
Finda a reunião, em lugar de voltar à própria casa, a fatigada trabalhadora decidiu jantar fora, para espairecer. Entrou no restaurante, um dos mais finos que frequentava (naquela noite, ela merecia esse luxo), e prontamente o “maître” lhe perguntou se não queria deixar o cadáver às suas costas no vestiário. Assegurou que a temperatura no recinto tornava dispensável levar o defunto. Marisa aquiesceu e sentou-se em local que permitia visualizar quase toda a sala. Desfrutou da entrada, do vinho, bem como do prato principal, e, ao iniciar a sobremesa, viu que outros colegas também tiveram a ideia de jantar ali. Armando, Joana, Cícero e vários outros.
Cada qual com seu cadáver atrás de si. Por que não usaram o vestiário?