Morte imprevista
Apesar das previsões otimistas, de que em poucos anos teria a nação "à sua mercê", obtivera pouco mais de 36% dos votos no segundo turno da eleição presidencial. Muitos do seu círculo íntimo agora torciam abertamente o nariz para o homem que fizera os prognósticos grandiosos, chamando-o de "charlatão de feira" e coisas bem piores. Judeu, por exemplo.
- Ele se apresenta como descendente de aristocratas dinamarqueses - retrucava, quase que invariavelmente. Afinal, não poderia justificar que um reles ator itinerante, filho de um vigia de sinagoga, lhe desse conselhos, mesmo que fossem sobre presença cênica e controle de multidões, algo que sabia fazer muito bem.
Ocorre que o filho do vigia de sinagoga tornara-se um astro do ocultismo na capital do país, onde travou conhecimento com aquele que previu estar fadado ao sucesso. Desde que, claro, seguisse suas orientações.
- Segui seus conselhos e mesmo assim, perdi a eleição - recriminou o aprendiz de feiticeiro ao seu mentor.
- Quando nos conhecemos, você era praticamente um desconhecido, - retrucou o interpelado com azedume - e agora acaba de disputar a presidência de um dos mais importantes países do mundo. É preciso prosseguir nesta trilha, se deseja mesmo tornar realidade seus planos de dominação.
O aprendiz calou então as vozes do seu grupo de conselheiros, e redobrou os esforços para ampliar a base parlamentar que lhe permitiria controlar o congresso, nas eleições do fim daquele ano. Tampouco obteve sucesso nessa empreitada, pois embora seu partido continuasse como a maior força política, terminou perdendo 34 cadeiras, tendo os conservadores e comunistas aumentado sua participação. Todavia, antes que o coro dos descontentes voltasse a se fazer ouvir, o adivinho fez um comentário que soava quase como uma análise política:
- A atual composição do parlamento é insustentável; o presidente reeleito necessitará chamar alguém de força para ser seu chanceler. E então, a hora de tomar o poder terá chegado.
Como isso parecia mais fácil de dizer do que de fazer, contou-lhes de uma visão que tivera:
- Vi o parlamento em chamas.
Não lhes revelou, contudo, quem seria o perpetrador ou como este executaria tal ato. E nem era necessário, visto que se tratava de uma profecia do tipo autorrealizável. O líder do maior partido indicado ao cargo de chanceler, quatro semanas depois ardia o parlamento, e um suspeito vinculado à oposição foi convenientemente preso e acusado pelo crime.
O adivinho não pôde gozar do mérito de suas previsões, e nem havia espaço para alguém com seu passado suspeito no mundo novo que se descortinava. Menos de um mês após o incêndio do parlamento, ele foi levado para um campo nos arredores de capital e executado.
Consta que ninguém chorou ou lamentou sua morte.
- [04-07-2019]