O Som e o Silêncio

Olá, escuridão, minha velha amiga…”

Gamesh surgiu das profundezas e pousou seu olhar perdido entre as árvores do Bosque Sagrado.

“Guardiã dos sonhos perdidos e amores não vividos, preceptora da ausência de fé na humanidade, eu vos saúdo. Permita-me sair de vossa morada e plantar vossas sementes entre os seres humanos.”

Proferiu as palavras antigas com as mãos estendidas atraindo toda a energia das trevas que emanava livremente naquele local. Um vento sibilante fez as árvores tremerem, foi ganhando força até transformar-se em um redemoinho que aspirou Gamesh, deixando o bosque solitário, tomado pela bruma que ascendia do solo fundindo-se com a névoa que baixava, camuflando a parca luz da lua minguante.

Alguns anos antes…

Nos arredores do Bosque Sagrado, único portal existente para o Submundo e para As Alturas, havia um monastério antigo, lar de monges que eram os guardiões do equilíbrio das forças da luz e das trevas. Muitos jovens queriam entrar, mas só eram escolhidos aqueles com grandes poderes e a completa abnegação da vida comum cotidiana. Aos pés do monastério, vários povoados se distribuíam na imensidão do mundo dos homens. Um desses povoados era especial, cheio de jovens agraciados com os dons que As Alturas distribuía. Esses dons serviam para que os humanos não fossem escravizados pelos seres do Submundo.

Nesse povoado morava Astrid, jovem donzela valente e sonhadora. Ainda na infância havia recebido uma cítara encantada, podendo, com sua música, destruir os seres inferiores do Submundo que porventura estivessem perambulando pelo mundo dos homens. Quando ela tocava era um deleite para os olhos e para os ouvidos, seus longos cabelos cor de cobre polido dançavam ao sabor do vento, a pele clara salpicada de sardas brilhava, os olhos cor de mel faiscavam no clímax da melodia dedilhada com precisão pelos longos dedos.

Vários rapazes declararam seu amor por Astrid, que sempre declinava da maneira mais gentil que podia já que o sofrimento alheio a tocava profundamente e sempre fazia de tudo para aliviar os pesares e dores de seus semelhantes, fossem pessoas ou animais. Seu coração, porém, pertencia a Juan, rapaz tímido e quieto que havia recebido o dom do canto e passava longo tempo praticando, sozinho. Possuía uma voz potente e melódica que se tornava suave quando dirigida a ela, sua pele morena corava quando ela se aproximava. Depois de um longo período de troca de olhares, sorrisos furtivos e incentivos discretos da parte de Astrid, Juan declarou seu amor e a vida não poderia ter ficado mais perfeita. Noivaram, planejaram o casamento, sempre praticando seus respectivos dons. O Submundo estava sossegado demais, assim como a calmaria logo antes da tempestade.

Em uma noite fresca e enluarada, Juan recebeu mais um presente das Alturas, um cajado que amplificava o som da sua voz. Ainda não sabia o modo correto de manuseá-lo, mas como noivo apaixonado, queria mostrar seu novo poder à sua amada. Por infortúnio ou obra do destino, apontou o cajado na direção de Astrid bem na hora da explosão dos sons. Depois que a onda sonora se dissipou, pode ver sua noiva caída, desacordada.

Atualmente…

Gamesh conseguira sair do Submundo e passeava pelos povoados. Entrou na primeira casa fazendo subir vários seres inferiores, espíritos mal formados, pequenos e repugnantes, que se assentavam nos ombros das pessoas e sopravam horrores em seus ouvidos.

– Apatia, ah apatia! Venha e cubra com o seu manto a alma dessa criança. – Gamesh dizia enquanto acariciava os cabelos da garotinha que dormia profundamente.

Logo o cinza tomou conta do ambiente, preenchendo todos os cantos.

– Isso, assim mesmo… – Um sorriso fugaz transformou o rosto de Gamesh em algo ainda mais hediondo.

Havia muito trabalho a ser feito, várias casas para visitar, muitas sementes para plantar, mas ele não resistiu ao desejo de vislumbrar as forças se esvaindo, as cores sumindo, a alegria agonizando.

Dias depois quase todos os povoados dormiam o sono sem sonhos da morte em vida. Não havia mais música, dança, festa, gritaria, alvoroço de crianças sorridentes nem galanteio de jovens vorazes. Nada. Só a apatia. Pessoas na mais profunda e sombria depressão.

***

O cheiro do incenso podia ser sentido em todo o monastério, as chamas das velas tremeluziam enchendo o salão de sombras, onde sete monges meditavam na posição de lótus. A energia das trevas aumentara de forma extraordinária, podiam sentir que o equilíbrio estava ameaçado, não havendo chances de ser restaurado sem ajuda. Movidos pelo instinto, os monges começaram a cantar. Um canto ancestral, profundo. Cada voz acionando uma engrenagem que movia o universo e abria caminho para o Submundo e para As Alturas.

Ainda cantando, os guardiões saíram do monastério, com túnicas marrons como a lama, capuzes cobrindo parcialmente seus rostos e caminharam apoiados em seus cajados até o Bosque Sagrado. No meio das árvores, um salgueiro chorão balançava seus longos ramos sem que a brisa os soprasse. Os monges, de mãos dadas, rodearam a árvore entoando a canção. Cada molécula de som foi atraída e dançava acima deles, tornando o silêncio do bosque ensurdecedor. Nuvens cobriram o céu e raios feriram os olhos com seu clarão, trovões explodiram fazendo a terra tremer. A dança dos ramos do salgueiro cessou de repente. Toda a energia da luz e do som havia passado para os guardiões. Estavam prontos para a batalha.

***

Astrid morava sozinha nas profundezas do Bosque Sagrado, lá praticava sua música, cuidava dos animais e vivia em constante harmonia com a natureza, mas algo a alertara de que o equilíbrio estava rompido, o número de espíritos que vagavam sem rumo havia triplicado. Não havia esquecido o som arrepiante que faziam, assobiando e murmurando seu mantra. Observando com cautela, sempre preparada com sua cítara, conseguia mandar um espírito desgarrado de volta para o Submundo com apenas alguns acordes. Só com a lembrança do som, podia compor melodias inteiras, o silêncio aguçara sua criatividade e o treino intensificara o seu dom.

Quando deixou sua família, seus amigos e seu noivo para trás, imaginou que fosse sua única opção, mas já não tinha mais tanta certeza. Precisava descobrir o que estava acontecendo. Pegou seus pertences e iniciou a viagem até o povoado. Cenas desconexas de dias distantes no passado foram suas companheiras na jornada. Juan mostrando, todo feliz e orgulhoso, o novo dom que recebera; a explosão de luz e sons; um som tão intenso que pensou estar sendo levada em suas ondas até o mundo dos mortos; sua mãe limpando o sangue que vertia de seus ouvidos, chorando; a expressão dos pais e do noivo quando perceberam que ela já não poderia ouvir mais nada; o desespero de Juan ao dizer para seus pais que abdicaria de seu dom para cuidar dela, ou pelo menos foi o que ela entendeu do que viu. Não queria ser um peso para ninguém, não podia deixar que ele desperdiçasse sua vida, seu dom, ficando ao seu lado, então fugiu. Tentou deixar sua cítara, imaginando que seu dom estaria perdido para sempre, mas não conseguiu, não podiam se separar. Abandonou tudo e todos, mas seu dom continuou junto dela, no silêncio do bosque cresceu e se desenvolveu. Estava mais forte do que nunca.

De longe viu os povoados desertos. Não havia sinal da antiga agitação, do vai e vem de comerciantes oferecendo suas mercadorias, nem a algazarra das crianças exibindo seus dons e presentes. Nada dos trabalhadores nos campos, nem das senhoras preparando a próxima refeição. Quando chegou mais perto notou que as pessoas estavam em suas casas, quietas e tristes, inertes, concentradas em si mesmas, chorando seus próprios males, indiferente a qualquer estímulo exterior. Sua música não seria capaz de restaurar o equilíbrio sozinha.

***

Gamesh contemplava sua obra satisfeito, havia sido tão fácil plantar as sementes da depressão e da indiferença na mente dos humanos. Não houvera resistência, todos passivos, passaram a conversar sem estar falando e a ouvir sem estar escutando. Cada pessoa dominada por um pequeno espírito desgarrado.

Um murmúrio desviou a atenção de seus planos. Começou como um sopro de brisa e foi crescendo até ser uma estrondosa canção. As vozes potentes faziam vibrar as ondas sonoras, abalando a recém adquirida supremacia das trevas. Podia ouvi-los antes que pudesse vê-los. Um de cada vez, os monges se materializaram diante dele. O canto que entoavam foi crescendo à medida que levantavam, sincronizados, seus cajados. As ondas sonoras iam varando e explodindo os espíritos desgarrados, tirando as pessoas de sua apatia.

Gamesh esperava a oposição dos monges, estava preparado para ela. Para cada espírito que abatiam, ele fazia subir mais dez. Um enxame desses espíritos voava ao redor dos guardiões, tirando sua concentração e enfraquecendo seu poder. Seria um ciclo eterno se não fosse a presença, tímida a princípio, de Astrid, que chegara a tempo de presenciar a aparição dos monges. Ela imaginou que eles conseguiriam dar conta de Gamesh e sua horda.

Depois de algum tempo viu que precisariam de ajuda. Abrindo caminho entre a miríade horrenda, conseguiu posicionar-se ao lado deles e com os olhos fechados, dedilhou em sua cítara a canção que compôs em seu tempo de reclusão. Mesmo sem jamais ter ouvido o canto ancestral, sua melodia encaixava-se perfeitamente em cada nota dedilhada. O som da sinfonia assustou Gamesh, que nunca havia presenciado tanto poder entre os humanos. O tempo começou a mudar devagar, as ondas sonoras se espalharam trazendo relâmpagos e trovões, o mesmo redemoinho que havia trazido Gamesh se formou sobre eles e engoliu todos os espíritos e ele, sem forças para resistir, foi aspirado para o submundo.

Astrid continuava tocando com os olhos fechados, não podia ouvir, mas sentia a vibração. Quando as ondas sonoras diminuíram, abriu os olhos e viu que o enxame de espíritos e o próprio Gamesh, haviam sumido. O equilíbrio havia sido restaurado. Cessou sua música e apoiou sua cítara no solo. Sentiu olhos fixados sobre ela, virou-se e viu os monges observando-a. Não sabiam de sua existência e estavam surpresos e gratos pelo valioso acréscimo às forças da luz. Um dos monges aproximou-se e retirou o capuz que lhe cobria a face. Era Juan.

Seu coração palpitou ao olhar para os ternos olhos castanhos, que combinavam perfeitamente com a túnica. Tantas lembranças se passaram na mente dos dois, momentos felizes, promessas de amor eterno, momentos de desespero e dor. Os olhos dele continham uma interrogação persistente que ela não poderia responder.

– Como consegue tocar…? – Disse ele pausadamente com uma esperança incômoda no semblante.

Conseguiu ler os lábios ainda tão queridos. Não sabia se ainda podia falar normalmente, então limpou a garganta e disse com a voz cavernosa e baixa, pela falta de uso.

– Ainda me lembro dos sons, embora viva sempre no silêncio. O som do silêncio pode ser tão belo quanto à música. Ele me ensinou a tocar melhor e aperfeiçoar o meu poder. – Respondeu, tentando sorrir.

Juan não queria lançar sobre ela todo o seu remorso e mágoa, não queria dizer que quando ela fugiu, procurou-a em todos os lugares, desesperado. Agora não adiantaria mais. Depois de algum tempo de dor e frustração, foi convidado a entrar para o monastério e como não tinha mais esperanças de reencontrá-la, havia aceitado. Era um monge agora, um guardião. Encontrou-a enfim, mas era tarde demais.

Despediram-se com um demorado aperto de mão. Os outros monges a saudaram como parte dos guardiões. Chamariam quando precisassem de sua ajuda. Ela assentiu pensativa. Não voltaria a viver enclausurada no bosque. Descobriu que o silêncio compartilhado era bem melhor do que o silêncio solitário. Sem olhar para trás, caminhou até o povoado em que morava sua família e amigos, enquanto Juan subia a colina que o levaria até o monastério. Viveriam entre o som e o silêncio.

***

Gamesh saiu do castelo do Senhor do Submundo envergonhado e cheio de fúria. Havia sido humilhado e repreendido por seu senhor. Fora derrotado por uma mulher, depois de ter os famosos guardiões sob controle. Um brilho mortiço se apossou de seus olhos fundos e negros quando maquinou uma doce vingança. Deixaria o mundo dos homens em paz por enquanto, mas no momento certo colocaria seu plano em prática.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 28/06/2019
Reeditado em 21/07/2019
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