PRAIA ESCURA
A freada arrasta olhares, o engate da marcha ré aprisiona. Capturados pelo sobressalto, assistem a manobra de estacionamento do veículo, de um só tempo, entre outros dois que se encontram parados ao longo da via. Telefones e câmeras de segurança acompanham.
– Que habilidade, vou jogar na net.
– Sim, mas rua não é pátio de provas.
O tempo congela até a porta ao lado do volante ser aberta. Um chapéu sobre uma cabeça se levanta e se desloca até a mala do sedan. Retira um embrulho e com um dos braços, pressiona contra o peito, bate a tampa e segue para a calçada. Os passos são curtos, dificultados pelo figurino: fraque, calça comprida e salto alto. Lábios rosados por batom, faces coradas por pó e sobrancelhas desenhadas. O que fora espanto se converte em curiosidade.
– Homem ou mulher?
– Deus tem dúvida. Talvez, transformista.
O mar vazante se espreguiça, a inclinação e brandura do sol apontam para o entorno das sete. O descongelamento do tempo devolve a rotina. O vento retorna a balançar a folhagem dos coqueiros e empurrar as ondas à dissolução. Nesse horário, o movimento é de veículos em direção ao centro da cidade, de corredores e ciclistas nas pistas do calçadão. Na areia, uns se exercitam, outros caminham, mas ninguém se arrisca banhar-se. No quiosque a movimentação está no reabastecimento, mas a água de coco espalha alguns clientes pelo balcão.
Um carro de polícia e outro da companhia de trânsito param. Três policiais militares, mãos sobre os coldres, se posicionam próximo ao veículo suspeito, dois agentes de trânsito o rodeiam, olham para dentro enquanto um intrometido se aproxima.
– Tem ninguém aí, não. Desceu, está na praia distribuindo sanduíche com o pessoal que dorme lá embaixo.
O pelotão militar, seguido por curiosos, atravessa a calçada, salta a mureta que serve de banco e retenção da areia e logo avista a rodilha de gente em torno do fraque preto.
– Nunca vi, andar de salto na areia.
– Cara de mulher e roupa de homem, então?
No início da abordagem uma nuvem manobra à frente do sol.
– A chuva vai estragar a praia.
– Vai nada, é passageira, vi na internet.
Os três guardas se posicionam de forma estratégica, mãos sobre os coldres. Os agentes do município se aproximam.
– Habilitação e documento do veículo estacionado lá na frente.
A partir das negativas de posse de documentos pessoais, de condução e propriedade do carro, as faces dos agentes petrificam e escurecem. Os guardas destravam a alça do fecho dos coldres e empunham as armas sem removê-las. A nuvem coloca tapumes em frente ao sol, algumas lâmpadas da orla acendem por entender a chegada precoce da noite. A plateia de curiosos se assusta ao olhar distante e ver claridade, aquela escuridão pertence só a eles.
– É loucura.
– Nada, com um carro desse e essas roupas, é gente de grana.
– Estaria no psicanalista.
– No psiquiatra, isso, sim.
– É saudade, essa coisa que dá no povo quando perde um amor.
– Deixem de coisa, nem sabemos se é homem ou mulher.
– E, lá importa, saudade desconhece sexo, chama a solidão, toma a alma e estraga o juízo e haja doidice.
Sem assombro ou mudança de semblante, atira o chapéu na areia, descalça os sapatos, retira o fraque, a blusa. Os seios não denunciam o gênero. A calça, retira com a ajuda de alguém próximo e com a mão esquerda, deixa cair sobre os sapatos. A ausência de roupa íntima revela a falta da genitália.
– Nossa Mãe! Caiu do céu.
– Deixe de tolice, nem possui asas, usa tapa sexo como nas escolas de samba.
Uns riem, outros fazem o sinal da cruz. O púbis repartido em metades, uma, lisa, a outra peluda, pelos que se distribuem ao longo da perna.
– Santo Deus! Será essa perna que assombra o centro da cidade?
Vira-se, caminha de encontro ao mar. Os guardas sacam as armas.
– Não atirem!
Passo a passo engolido pela escuridão das águas... Relaxem, dispensem a aflição, o mal não mais me alcança.
Publicado em 2018 pela editora Bagaço na coletânea 28 Cantos de Solidão
– Que habilidade, vou jogar na net.
– Sim, mas rua não é pátio de provas.
O tempo congela até a porta ao lado do volante ser aberta. Um chapéu sobre uma cabeça se levanta e se desloca até a mala do sedan. Retira um embrulho e com um dos braços, pressiona contra o peito, bate a tampa e segue para a calçada. Os passos são curtos, dificultados pelo figurino: fraque, calça comprida e salto alto. Lábios rosados por batom, faces coradas por pó e sobrancelhas desenhadas. O que fora espanto se converte em curiosidade.
– Homem ou mulher?
– Deus tem dúvida. Talvez, transformista.
O mar vazante se espreguiça, a inclinação e brandura do sol apontam para o entorno das sete. O descongelamento do tempo devolve a rotina. O vento retorna a balançar a folhagem dos coqueiros e empurrar as ondas à dissolução. Nesse horário, o movimento é de veículos em direção ao centro da cidade, de corredores e ciclistas nas pistas do calçadão. Na areia, uns se exercitam, outros caminham, mas ninguém se arrisca banhar-se. No quiosque a movimentação está no reabastecimento, mas a água de coco espalha alguns clientes pelo balcão.
Um carro de polícia e outro da companhia de trânsito param. Três policiais militares, mãos sobre os coldres, se posicionam próximo ao veículo suspeito, dois agentes de trânsito o rodeiam, olham para dentro enquanto um intrometido se aproxima.
– Tem ninguém aí, não. Desceu, está na praia distribuindo sanduíche com o pessoal que dorme lá embaixo.
O pelotão militar, seguido por curiosos, atravessa a calçada, salta a mureta que serve de banco e retenção da areia e logo avista a rodilha de gente em torno do fraque preto.
– Nunca vi, andar de salto na areia.
– Cara de mulher e roupa de homem, então?
No início da abordagem uma nuvem manobra à frente do sol.
– A chuva vai estragar a praia.
– Vai nada, é passageira, vi na internet.
Os três guardas se posicionam de forma estratégica, mãos sobre os coldres. Os agentes do município se aproximam.
– Habilitação e documento do veículo estacionado lá na frente.
A partir das negativas de posse de documentos pessoais, de condução e propriedade do carro, as faces dos agentes petrificam e escurecem. Os guardas destravam a alça do fecho dos coldres e empunham as armas sem removê-las. A nuvem coloca tapumes em frente ao sol, algumas lâmpadas da orla acendem por entender a chegada precoce da noite. A plateia de curiosos se assusta ao olhar distante e ver claridade, aquela escuridão pertence só a eles.
– É loucura.
– Nada, com um carro desse e essas roupas, é gente de grana.
– Estaria no psicanalista.
– No psiquiatra, isso, sim.
– É saudade, essa coisa que dá no povo quando perde um amor.
– Deixem de coisa, nem sabemos se é homem ou mulher.
– E, lá importa, saudade desconhece sexo, chama a solidão, toma a alma e estraga o juízo e haja doidice.
Sem assombro ou mudança de semblante, atira o chapéu na areia, descalça os sapatos, retira o fraque, a blusa. Os seios não denunciam o gênero. A calça, retira com a ajuda de alguém próximo e com a mão esquerda, deixa cair sobre os sapatos. A ausência de roupa íntima revela a falta da genitália.
– Nossa Mãe! Caiu do céu.
– Deixe de tolice, nem possui asas, usa tapa sexo como nas escolas de samba.
Uns riem, outros fazem o sinal da cruz. O púbis repartido em metades, uma, lisa, a outra peluda, pelos que se distribuem ao longo da perna.
– Santo Deus! Será essa perna que assombra o centro da cidade?
Vira-se, caminha de encontro ao mar. Os guardas sacam as armas.
– Não atirem!
Passo a passo engolido pela escuridão das águas... Relaxem, dispensem a aflição, o mal não mais me alcança.
Publicado em 2018 pela editora Bagaço na coletânea 28 Cantos de Solidão