doce perfume
Meus sapatos estavam gastos demais, era dolorosamente óbvio enquanto eu caminhava pela principal rua da cidade. Pelo menos para mim. Outros transeuntes não pareciam se preocupar com mais uma mancha no grande cenário cinzento naquele labirinto de prédios. Tantas coisas a serem feitas, tantos objetivos a serem alcançados. Mas não fazia diferença, meu objetivo era claro, e definitivamente simples. Precisava encontrar um perfume. "Doce", ela me disse semanas atrás. Sempre fora assim, sempre gostara do enjoativo, sempre gostara das roupas muito maiores do que realmente necessitava. Era um pouco gorda, sem dúvida, resultado da idade avançada, mas parecia muito maior com aqueles vestidos de cores escandalosas com os quais adorava sair para suas caminhadas durante à tarde. Adorava o velho clichê de alimentar pombos sentada no banco da praça enquanto cumprimentava ocasionais conhecidos que aconteciam de passar por lá. Ela nunca admitiria, mas ela sabia quais passariam e até mesmo em quais horas. "Doce", ela havia dito. Doce ela teria. Como um filho fui impecável, o melhor que se poderia achar nas redondezas. Como pessoa... bem, digamos de maneira sutil: um desastre total. 36 anos e, ainda morando em meu velho quarto, eu ainda a via sair com seus vestidos ridículos. Incompetência, falta de preparo e falta de oportunidades haviam me colocado em minha deplorável situação. Vez ou outra eu conseguia uns trocados e agora mais do que nunca precisava de tudo que pudesse conseguir. Vendi algumas relíquias de família e outras coisas igualmente idiotas. Minha família era uma falha. Produtora implacável de carregadores de trocados em carteiras velhas.
Finalmente avistei a loja pela qual havia decidido. Tudo era lindamente iluminado e me senti como um rato de esgoto, desconfortável com toda aquela luz e as atendentes tão bem vestidas e maquiadas. Ela conseguiu disfarçar razoavelmente bem seu asco diante de minhas roupas antigas. E meus sapatos gastos demais.
"Boa tarde, senhor. Posso ajudá-lo?"
Não conseguiria responder sem cair nas velhas palavras clichês. Ela era linda, imaculada. Seus cabelos castanhos partidos caíam de maneira harmoniosa, quase poética, por sua face e seus ombros. Seus olhos, igualmente castanhos, infelizmente, nada de especial refletiam. Sua voz era aguda demais. Sua roupa rosa demais. Ainda assim ela era doce. Obviamente me senti oprimido, pura e simplesmente por minha mente e meus pensamentos idiotas. Inevitáveis e fiéis companheiros.
"Ahn, espero que sim" Sorria como um idiota. "Estou procurando um perfume doce".
Era um amplo espectro. Ela também sorria, mas não como idiota. Pensei no homem que em algum lugar a traía em algum motel barato com sua secretária. Era simplesmente o rumo da vida.
A partir daí ela foi me encaminhando, pacientemente me dizendo nomes e oferecendo-me amostras. Era um trabalho cansativo, meu deus. Meu olfato não sabia diferenciar muito bem o que lhe era apresentado. Todos pareciam iguais.
Em determinado momento eu disse que era o suficiente e escolhi o mais barato. Afinal, que diferença fazia a este ponto?
"Ótima escolha!" ela acrescentou. Senti-me profundamente triste neste momento, talvez até mais mesmo que nos dias anteriores, levando em conta tudo pelo qual havia passado. Não havia necessidade deste tipo de coisa, deste tipo de acréscimo, deste tipo de mentira. Era algo que ela diria sobre qualquer perfume que eu escolhesse. E como um vidente, já esperando, apenas ouvi:
"Eu mesmo uso este para várias ocasiões".
Sorri, pois esta era a resposta para tudo, certo? Não poderia dizer: "sua puta, como eu gostaria de arrancar sua roupa e te comer aqui mesmo"; ou "se eu não fosse um cliente você não se daria nem ao trabalho de falar comigo"; ou "por favor, me ame".
Por fim ela perguntou a forma de pagamento. Meus trocados amassados falaram por mim e acharam graça da careta da vendedora.
Novamente na rua meu sapatos gastos reverberavam pelo pavimento. As pessoas continuavam da mesma forma de antes. Ternos, maletas, jeans, barbas, lábios, bundas, vestidos, seios. Tudo caminhava e tudo parecia caminhar oposto a mim. Neste momento realmente tive o desejo de possuir um carro, mas eu tinha certeza de que seria o tipo velho, talvez um fusca com estouros no escapamento e motor quase fundido.
Eventualmente cheguei à funerária. Tudo aconteceria mais tarde, com a chegada de parente e amigos para o velório. Minha mãe estava no caixão vestida de maneira solene, com tecidos escuros, quase pretos. Retirei o perfume da embalagem.
"Doce", ela havia dito.
Aproximei-me de seu rosto, sem muita certeza do por que. Tão pacífica, como todos os mortos preparados para velórios. Tão diferente do que havia sido em vida: controladora, nervosa, abandonada, doente.
Espirrei o perfume. Doce, doce, doce. Agora tudo estava bem. As roupas, o perfume e o filho completamente sem rumo, mas com muitos trocados na carteira.
Começava a anoitecer.
Esperava cruelmente que o doce, doce, doce espantasse os abutres para que tudo aquilo terminasse de uma vez e eu pudesse ir em outra loja fazer uma outra compra, desta vez uma compra muito mais importante.