O homem que fazia sabão
Naquele povoado tudo era comandado por uma pequena comunidade religiosa, cujo pastor era um homem severo e antiquado. Detentor de uma palavra forte e vibrante, fazia tremer quem ousasse discordar de alguma das suas ideias e todos se preocupavam em agradar-lhe sem restrições.
As crianças eram as primeiras a correr, quando do alto do seu metro e quase noventa escancarava uma boca rasgada e advertia com voz de trovão.
Todos se preocupavam em louvar um Deus que era formatado à imagem daquela realidade, de acordo com as condições da maioria das pessoas; pobres, sofridas e com um horizonte muito restrito, encurtado ainda mais pela impossibilidade de saírem dali para conhecerem outros lugares.
Mesmo assim, parecia existir uma espécie de serenidade podre e envolvente que deixava tudo com um aspecto de alegria forçada e contagiante, não fosse algumas histórias estranhas e perturbadoras que contavam sobre algumas pessoas da região.
Dentre esses relatos, os mais velhos tinham eleito um personagem que era o principal responsável pelo temor das crianças e deixava os adultos numa incerteza muito grande quando o assunto assim o exigia. Ou sempre que esse homem aparecia na aldeia, transportando consigo todas as maldições concebíveis e inconcebíveis que lhe diziam respeito. Era injusto, mas aquele homem estava fadado a um destino trágico e obscuro apesar de, aparentemente, nunca ter feito mal a ninguém. Diziam que aquele homem era tão estranho e nefasto que, em alguns casos em que fora afrontado pelas crianças, tinha-as levado consigo dentro de um enorme saco e com elas, fizera sabão...
E um dia, quando todos estavam no início de mais um culto, ele apareceu subitamente no meio daquela multidão e dirigiu-se apressadamente ao púlpito da igreja para se tornar o orador da noite. Tinha vindo substituir o pastor titular, sem o conhecimento do grupo que aguardava descontraidamente a chegada do seu líder. Não foi imediatamente reconhecido pelos presentes, mas o seu vulto exageradamente magro e desengonçado, a sua cabeça ossuda e projetada para trás em que exibia no vidro de um dos olhos uma expressão marcadamente desconcertante e transfigurada, deixou um rastro de apreensão naquela sala.
Quando começou a falar, a sua voz era cristalina e melódica como uma lira, os seus movimentos eram estéticos, graciosos e a expressão era eloquente e segura. Nunca ninguém ousara escutar aquela voz que transmitia segurança e prendia a atenção, até dos menos devotos. Os mais velhos acotovelavam-se e faziam observações uns aos outros quase em surdina e entre dentes. As crianças, à medida que o iam reconhecendo tremiam, ao aguardar um gesto que indicasse que aquele homem pegaria inadvertidamente em um saco para levá-las consigo. Aquela figura manteve-se por bastante tempo entregue e atenta aos seus fiéis, transbordando palavras de amor e esperança na sua homilia, quase fazendo esquecer o seu passado lendário e impiedoso.
Não fosse um gesto inesperado daquele orador e tudo teria decorrido na mais santa paz. A certa altura, quando todos os fiéis já se encontravam envolvidos por aquele destino crente e louvável, o homem pediu a todos os adultos que perfilassem as suas crianças junto ao altar, já que pretendia ofertá-las e honrá-las com uma pequena lembrança. E assim foi. Aquelas crianças pobres, empurradas pelos seus pais, começaram a formar uma longa fila junto àquele homem que parecia agora ser mais uma figura de regeneração divina do que uma criatura sinistra e do mal.
Mas, quando tudo parecia apontar para um final feliz e honroso para aquela comunidade envolvida pelo seu Deus, um pequeno detalhe foi responsável pelo reinício da dúvida cruel que pairou sobre aquela criatura; aquele homem fizera subitamente aparecer do nada, uma grande sacola pesada que arrastou até ao centro da igreja e dela começou a tirar pequenos embrulhos que distribuiu por todos os presentes. E disse, num tom suave, feliz e aprazível: – Esperei muitos anos por este momento e esta é uma dívida que tinha para com muitos de vós. – Recebam humildemente cada amostra deste sabão, em nome do Senhor Jesus e com ele lavem cuidadosamente o corpo e a alma para remissão dos vossos pecados!