Letras da Arábia - O Rato é mísero, a Condessa é gorda
O rato assume sua miséria, a Condessa nega sua gordura, o sol se esconde e desce a noite. Por enquanto, há luzes na rua, mas o quarto da Condessa está cheio de escuro, assim como a barriga do rato já não cabe de vazio. A Condessa dorme, os intestinos roncam e o rato irrompe... Os intestinos roncam enquanto houver fome e saciedade. Com respeito ao estômago, a Condessa está farta e o rato em falta.
O rato arregala os olhinhos e divisa as lúbricas montanhas acondicionadas no corpo da Condessa, mas o rato tem é fome e adentra o camiseiro. E há negligês e pantalonas, mil rendados e pecinhas, quantos cortes de tecido, o rato é mísero e a Condessa é gorda. E rói que rói, o rato arranca, o rato arrasta, o rato raquítico se enrobustece, o rato é mísero e a Condessa é gorda.
Mas correm horas e o tempo avança, o rato cresce e a Condessa, em meio aos sonhos, se imagina perante um bruto dum tribunal - e todo ele constituído de gordos ratos. E nuazinha - e em que gorduras! - se compromete a devolver todo o tecido, todo o rendado, todo o supérfluo de sua vida. Que sonho horrível, gentil Condessa! Que humilhação prestar contas aos miseráveis! E nuazinha, sem nem um pano, sem nem um véu, sem uma cinta pra disfarçar imperfeições...
O rato é gordo, mas a Condessa é mísera. E atravessa ela o grande salão em que se transformou a gaveta central do camiseiro. Vai ela equilibrando as abundâncias ao longo da passarela, eis que agora está desfilando perante o tribunal dos brutos, os gordos, os tártaros que a flagelarão. E eis que avançam, os olhos que comem, a Condessa nem sequer as mãos tocava aos miseráveis e eis que agora avançam eles para bem próximo ao Sublime Corpo, já ultrajá-lo, já conspurcá-lo... E a Condessa emite o grito, mas o grito desobedece e não sai – onde estarão meus guardas? – a Condessa roga às pernas que a locomovam, mas nada vale, a respiração dos brutos, dos gordos ratos se apressa e se aproxima, ela quer gritar, é preciso escapar, que nojo, que asco, os miseráveis se revoltaram, a respiração da Condessa não está normal, ela deve acordar, a Condessa não passa bem, que lhe tragam água e comprimidos, antiácidos se possível, é tudo da festa de ontem, é tudo um pesadelo, pobre Condessinha, os ratos nunca se revoltam.
Foi tudo um pesadelo. Quem dera fosse também um pesadelo o assalto ao camiseiro, visto que não sobrou um negligê ou peça íntima pra contar a estória. Mistérios de roedores.
(Jeddah, Arábia Saudita, 07/1975)