Brincando de Franz

Eu dirigia na estrada à noite. No carro minha esposa, Fátima, minha mãe, dona Maria e minha irmã, Elizabete. Eu estava com um sono incontrolável, mas estava perto de casa. Um grito da Elizabete me exigiu o máximo de concentração:

-VOCÊ PERDEU A SAÍDA!

-Não vi, estava muito escuro. Pegarei o próximo retorno.

Mas mesmo com a concentração máxima minhas pupilas tentavam ir para cima deixando-me cego sem a vista do que estava acontecendo na estrada. Freei procurei manter uma linha suave diagonal para sentir que tinha entrado no acostamento. Parei. Expliquei que não estava conseguindo conduzir carro. Estava com um problema na vista.

Retomados do susto minha irmã pegou a direção terminou de nos conduzir com segurança para a casa da mãe. Minha esposa pegou o carro e nos levou para nossa casa. Enquanto estive de carona pude fechar os olhos pois com eles abertos eu era uma figura que daria medo, uma vez que minhas pupilas sumiram olhando para cima. No dia seguinte, cedo, as três me colocaram no carro e me levaram para uma oftalmologista.

Ela me fez algumas perguntas uns exames olhando nos olhos. Disse que não era a profissional mais adequada para meu tratamento. Como as estruturas e funcionalidades dos olhos pareciam boas, talvez um especialista pudesse fazer o diagnóstico preciso do que ela desconfiava ser alguma demência em seu estágio inicial. Lembro de ver o horror nos rostos da minha família. Lembro também de ter chorado. Neste momento eu me acordei.

No café da manhã eu contei sobre o pesadelo para minha esposa. Ao invés dos tradicionais sermões a respeito dos meus horários de dormir tive uma compreensão incomum. Sugeriu que eu completasse minhas horas de sono. Enquanto eu deitava ela fechava as cortinas para deixar um quarto bem escuro. Deitado, com a consciência pesada eu lhe prometi:

-Vou procurar acertar os meus horários. Obrigado.

- Sono é saúde - ela falou, puxando lençol para me cobrir e me dando um beijo no rosto - agora descanse.

Acordei na manhã seguinte e fui contar dos diversos sonhos sem nexo que tivera. Nossa tinha dormido quase 24 horas. Fátima parecia um pouco impaciente.

-Estou sem tempo agora. Estou atrasada para o serviço. Descansou bem?

-Nossa já estamos em outro dia? - ela parecia não compreender bem do que eu estava falando.

-Você anda muito agitado. Tome estes remédios. Vão te acalmar.

-O que são estes remédios?

-Simplesmente analgésicos e calmantes. - o ficar deitado tanto tempo tinha me presenteado com uma dor nas costas, então achei uma boa ideia.

-Recebi os três comprimidos e antes que ela fosse buscar meio copo de água eu já tinha engolido.

Lembro de um sono avassalador ter caído sobre mim. Quando acordei vi uma mulher estranha que me olhava com um olhar de piedade.

-Quem é você? Perguntei.

-Sou eu querido. Tudo bem? - que história era esta de querido falado assim com tanta intimidade?

-Onde está a Fátima?

-Que Fátima é está que você fica falando?

-Como assim: "Que Fátima é esta?", Fátima, a minha esposa.

-Agora você está dizendo que tem outra família? - a forma como aquela estranha falava me deixava confuso. Parecia uma brincadeira de mau gosto. Seu olhar de piedade me arremetiam a Kafka e me sentia uma barata.

-Não sei quem você é, mas não estou gostando desta brincadeira.

-Querido por favor acalme-se. O dr. disse que poderia haver alguma confusão mental. Disse que seria normal. Efeito dos remédios... - eu não sabia o que falar. Era tudo muito surreal.

-Você tem aqueles comprimidos para dormir? - tinha a esperança de dormir e acordar de novo no meu mundo e ter aquela louca experiência como um pesadelo.

-Claro. Vou buscar...

-Fiquei reparando no quarto. Era tudo diferente. Num balcão uma foto onde eu estava de mãos dadas com a estranha num parque balançavam ainda mais minhas certezas.

Acordei num lugar totalmente diferente, muitos leitos e muita gritaria, gemidos, tentava entender. Um homem com um capacete onde tinha uma Cruz Vermelha passou por mim e disse.

-Olha que bom vejo que você acordou. Pensamos que não sairia desta...

-Que "desta"? Onde estou? O que é esta gente toda gritando?

-São soldados de infantaria assim como você e que foram feridos numa emboscada. Estamos tratando...

-Soldado? Eu? Você está louco? - vi no olhar do enfermeiro uma piedade que eu já tinha visto em outros olhares, era como se uma casca dura começasse a crescer nas minha costas. Tive quase vontade de sair correndo para o mato.

-Soldado Matias eu sei que é muito doloroso e traumatizante. Não sei como o senhor conseguiu sair vivo. Tenha calma que aos poucos as coisas vão ficando mais claras. Tome estas pílulas que você vai começar e se sentir melhor. - Pílulas? Desde que eu comecei a tomar as coisas só pioram. Parecem que elas me levam para a vida de outro doente. Aceitei, fingi que tomei e cuspi assim que o enfermeiro estava a uma distância aceitável. Mas o cansaço era grande e o sono gigante e mesmo com medo do que me esperava, mas esperançoso de voltar para a minha vida, sei aquela com Fátima ou talvez com a estranha mesmo, pois qualquer coisa era melhor do que estar no meio de uma guerra todo estropiado.

Acordei num ambiente agradável estava numa poltrona que mais parecia uma cama. Parecia que eu estava numa primeira classe de alguma linha aérea. Uma aeromoça me chamou por um nome que eu desconhecia:

-Como está a viagem sr Carlos. Está conseguindo descansar bem?

-Olha moça posso te contar um segredo. Eu tive alguns problemas de memória e gostaria de que você me atualizasse do destino. - eu não sabia como começar mais o melhor talvez fosse ganhar a empatia da aeromoça uma vez que ela até me chamara nominalmente.

-Claro senhor Carlos. O senhor está a 15 minutos do aeroporto de Sidney, na Austrália. Hoje o senhor tem uma reunião apresentando nosso spray e deve voltar ainda hoje para o Brasil.

-"Nosso spray"? Do que você está falando. Você não é uma aeromoça deste avião?

-Sou uma das 5 aeromoças deste seu avião. E quando falo do "nosso spray", me refiro ao MATRIX, inseticida famoso no mundo todo por liquidar com as baratas de propriedade do senhor. - a loucura estava grande, mas pelo menos agora eu estava curtindo.

-Melhor o senhor afivelar o cinto, já vamos começar à descer.

-Ok, ok. Você poderia me trazer um copo de wiski por favor?

-Mas e a recomendação médica senhor Carlos? - ah sempre a recomendação médica.

-Não importa. Apenas me obedeça obrigado.

-Sim senhor.

-Ah e avise que estou muito cansado para a reunião hoje. Tente ver com minha secretária para reagendar para amanhã. - Tinha planos de curtir aquele dia em Sidney antes que algum comprimido ou sono me mandassem para outro lugar/tempo deste mundo.

-Mas senhor, não tenho o telefone da sua secretária...

-Pegue na minha bolsa. Vejo em você um grande potencial para secretária executiva. Você já conhece Sidney? - Ela pegou a bolsa e abriu. Dentro uma lata spray do famoso Matrix. Levei um susto. Me soltei do cinto e dei um salto para trás. - Cuidado com isto aí!

-Mas o grande mote deste seu inseticida é que ele é inofensivo para humanos e é terrível contra baratas - fez isto dando uma baforada leve no ambiente com um sorriso enigmático, que ia do inocente ao sádico. Comecei a me sentir tonto. A última coisa que me lembro é que estava no teto do avião agarrado. O negócio era bom mesmo.