O LOUCO

Senti uma dor sobrehumana. Se soubesse como é a dor do parto diria que era essa a dor. Mas aí o que veio depois foi ainda pior. Como se parisse mesmo, pelas vias naturais de onde só poderia sair qualquer coisa como um feto de mim, o ânus; e saiu mesmo, um monstro, um verme.

Já me agarrava a qualquer estrutura em que pudesse me apoiar e suportar aquelas contrações e a violentíssima massa viva que se avolumava e parecia crescer dentro de mim e empurrar tudo a frente para sair de uma vez.

Quando caiu era um pacote cheio de sangue. Parecia um enorme fígado. O ser disforme e flácido ficou inanimado enquanto eu olhava pra ele e foi então que caí desmaiado.

Acordei deitado no meu próprio sangue, no mesmo lugar. Mas o parasita, a tal massa avermelhada, não estava lá. Aquela vida bizarra que parecia ter saído de mim havia desaparecido. Digo parecia, sim. Porque embora a dor hercúlea e toda a agonia e sofrimento não me fizessem esquecer, ainda assim nada parecia real. A impossibilidade do fato tornava aquilo um mero sonho pra mim. Embora reflexos de dor ainda irradiassem de todo o meu corpo.

Segui minha vida depois disso sem nunca contar o episódio para ninguém. Seria insano só pensar nisso. Não sei como não enlouqueci.

Naquela noite agitada em que não consegui dormir e as fortes contrações voltaram e meus intestinos pareciam se revirar dentro de mim e coisas se remexiam como vermes na minha barriga, eu entendi tudo finalmente. Dezenas deles, se mexiam como minhocas, mas eram bolas marrom avermelhadas que se locomoviam sobre o próprio ventre, com ventosas cerradas de dentes e gritavam sons irritantes e embora ininteligíveis soavam estranhamente como um: "mamãe", aos meus ouvidos e vinham pra cima de mim e estavam começando a me devorar, todos eles. Me comiam vivo, dizendo: mamãe, mamãe. Não conseguia olhar, mas sentia os dentes comendo pedaços do meu corpo como se fossem tornos na madeira, furiosos, insaciáveis. Eu estava morrendo, mas curiosamente, não sei como, ainda me mantinha vivo, num estado vegetativo. A essa altura já nem sentia dor, estava morto.

Morri como um humano, sim, de certo. E agora minha situação era bem diferente. Eu era um deles. Um gastrópode gigante e belo. Rígidos pares de antenas e um ventre roliço e lustroso, com muco extra. Juntava-me aos meus amigos para a tão sonhada rebelião.

Finalmente o grande dia tinha chegado. Nós, lemas e caracóis, como todos os gastrópodes em geral, reinvidicamos a liberdade por séculos e séculos até agora.

Pacientes que somos, sabíamos que o dia chegaria. O dia da vingança. Pisoteados, incendiados, mortos por diversão aos montes. Seus filhotes nos matam jogando sal na gente só pra brincar, porque simplesmente eles não acham lugar pra nós no mundo deles. Eles não sabem que nós somos superiores?

Já estávamos aqui antes deles, continuaremos depois. Eles pediram por isso e agora vão ter o que merecem. Mexem aqui e ali. Como se toda a terra os pertencesse. Sem limites eles invadem nossas casas e nos tratam como os intrusos.

Depois que depositarmos nossas larvas em seus intestinos e os fizermos de incubadoras para nossos filhotes, todos serão devorados e os que sobreviverem implorarão pela morte, até o fim. Será o fim para todos eles.

Meus amigos discutem agora. Os mais engajados na luta, os revolucionários, estão em reunião. Será decisiva. As armas estão preparadas, nossos sucos gástricos os dissolverão enquanto os comemos vivos e será apenas o começo. E agora, aqui na sala pensando, olhando para aquele quadro na parede. Ali está a minha tia Mafalda, no retrato, sorridente, de vestido azul e rosto corado. Eu me lembrei desta curiosa similaridade dela com os gastrópodes. Ela sempre salivava muito e escarrava o tempo todo. Seus olhos lacrimejavam e estava sempre coberta, dos pés à cabeça, com muitas peças de roupa, não importava o calor que fizesse. Minha tia só queria se proteger, agora eu sei. É de família. Era um gastrópode por herança antes de virar um à força.

Sei que também tive um tio que era um cachorro, mas esse por parte de pai. Era tio Lúcio. Sempre farejando as coisas. Pegava ele de língua de fora em constrangedoras situações. Tentava disfarçar, mas eu deixava bem claro pra ele que vira tudo. E uma vez que o flagrei se segurando ao jogarem uma bola para o Thor, cachorro do vizinho? Mas ouvi ele rosnando para o cachorro, o desafiando. Meu tio era um cachorro, estou convicto. Se estiverem infiltrados também os cachorros e se tiverem um plano para também destruir a raça humana? Não. Patetas como são ficarão do lado deles ainda. Não têmo pelos cachorros. Eles não.

Quando acordei a chuva caía pesada lá fora e da janela, parada, enorme e inquietante, uma lesma me encarava, indiferente ao tempo, à estar ali, à tudo. Só me encarava, como se fosse minha amiga, como se risse pra mim. Como se fosse me contar sua história.