DE COMO UM HOMEM FOI ANDANDO ATÉ DESCOBRIR QUE ESTAVA SEM PERNAS

Comprei sapatos sete léguas, vou seguindo sem parar. Estrada asfaltada ou de terra, nada me vai desanimar. Alô, amigo! Bom dia, minha senhora! Eta mundo!

A estrada é igual a nós, segue, segue, ora reta, ora tortuosa, até seu final, quando há. Aquele bicho lá me lembra alguém. Vivemos a identificar nós mesmos e os outros pela vida afora. E o que somos afinal? Tudo o que vemos ou tudo o que pensamos ver? Talvez o que eu veja verde seja vermelho, ou sem cor, se o julgarem amarelo. Não sei, nunca soube, nem sei se virei a saber. Sou burro. Não, o burro é animal inteligente; eu sou só um animal racional.

Percebo as nuvens no céu e penso em chuva, mas também fico a querer lembrar algo mais. Eterna busca de identidade, comprovante de um ego de segunda dimensão que nos persegue e troca diariamente de personalidade conosco. Eu sou a estrada que segue sempre, ou por outra, para sempre. Sou livre, mas limitado, quisera saber o que é liberdade.

Comprei sapatos sete léguas do pequeno Polegar. Eu também tive infância. Ou talvez outros a tenham tido por mim. Bom dia, meu bom velho! A fumaça de lá não me faz bem, eu penso tudo escuro. Aqui está melhor, mas o lá já vem de novo. O edifício é de concreto, os apartamentos vão montando uns sobre os outros. O homem é de barro e uns também vão montando sobre os outros.

Parece haver árvores à minha frente, mas os jardineiros já se foram. Quem falou no fim, está bem próximo do começo. Agora descobri que eu fiquei no meio...

Sai, gato preto! Disse preto, mas ele era branco, quem sabe não fosse uma gata. A razão sempre a pregar peças nos outros e em nós mesmos. Uma vez, li que quem engana a outrem, engana a si próprio. Mas será isto? Acho que me enganei. Ou foi o outro? Preciso identificar-me mais uma vez.

Sou astronauta. Estou na Terra devido a um resfriado que peguei. Ademais, não gosto de estrelas. Todos gostam, mas eu, não. Sou do contra. Meu destino quer que eu ande pela esquerda até que outros vejam que a direita não lhes convém. Aí, eu passo para o outro lado. Talvez.

Comprei sapatos sete léguas para ver Papai Noel me trazer o mundo. Quero voltar à infância e estou cada vez mais próximo dela. A estrada segue e segue, não vejo pedras no caminho. Devia virar bandeirante e explorar fora do caminho. Aí, talvez eu encontrasse as pedras. Quando se veem as pedras do caminho é que se compreende a importância do varredor de ruas.

E a fumaça lá está de novo! Cuidado, grosseirão! Olha o sinal vermelho! Não paramos no verde e eu gostaria de saber por quê. Na verdade, até agora só eu pensei nisso. Vai ver, eu seja mais inteligente que o resto do mundo. Um dia, verei dentro de mim mesmo. Eles não sabem fazer isso. Sei nadar em rosas, tomar mel da lua, sei pensar e sonhar. Eles, não. Só andam, andam e andam. A existência tem um sentido ou um limite que foge a todos. Mas eu vou fazer o contrário. Vou fugir da existência. Então, enganarei todo mundo e ninguém mais me enganará. Serei eu, sozinho, com meus sapatos sete léguas.

O que importa é ir prá longe. A chaleira solta vapor, as plantas soltam folhas, as galinhas soltam ovos, o pneu solta ar, tudo tem um escape. O meu, não sei qual é. Sou diferente, engano, sou enganado, mas enganar de um jeito é impossível. Só não sei o jeito. A identidade da pedra é algo mais que não sei. Quero saber tudo, mas sinto que nada sei. Talvez descubra tudo ao terminar a estrada. Estou no rumo certo, disso tenho certeza.

E a certeza me conduz – à incerteza, a um fim, os sapatos se acabaram na estrada sem pedras.

In Traços e Troças (2015), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP