Teoria do Absurdo
Ao fechar o livro, após se deliciar com o último capítulo da história, o professor Maurício pôde ouvir os estrondos. Nada demais, se comparado ao grande terremoto da semana anterior, ou o aguaceiro da enchente de dois meses atrás, porém, era um estrondo diferente.
Colocou o livro alinhadamente aos demais livro da prateleira sobre a tv. Na prateleira torta, presa à parede com pregos enferrujados, e que parecia que iria despencar a qualquer momento, alguns livros muito empoeirados se amontoavam. Livros que ele lia, relia, e que aos poucos iam sendo “lenha” para as fogueiras das noites mais quentes.
Maurício foi até a janela e observou do alto do quinto andar, de seu apartamento na Rua Barata Ribeiro, altura de Copacabana, a rua deserta lá embaixo. Estava exatamente como da última vez que olhara uma semana antes, para confirmar se era apenas outro terremoto. Os carros estavam trepados uns sobre os outros, carregados pelas constantes enchentes na cidade, misturada com o remelexo sem precedência dos terremotos imprevisíveis que vinham destruindo as ruas do grande Rio ultimamente. Maurício observou bem a rua. Aquele silêncio. Nem parecia a Barata Ribeiro de outrora. A brisa leve que adentrou pela fresta da sua janela embaçada e empoeirada, não só trazia cheiro de maresia, qual ele sempre gostara nos últimos doze anos que morava ali, mas agora, depois de alguns tempos, começara a trazer o enjoativo cheiro de corpos em decomposição, cheiro de podre.
Voltou para dentro de casa e folheou alguns jornais jogados pelo chão. Sorriu quando algumas baratas saíram debaixo dos papéis e se esconderam sobre a cômoda, onde a televisão, com um imenso buraco de tiro, refletia a sua imagem embaçada e escura. O professor folheou alguns jornais e foi lendo as tragédias. Enchentes, terremotos, tempestades com níveis assustadores, que duraram por meses. Até que abriu na página central do jornal, e abriu a enorme foto em duas páginas da tsunami que destruiu toda a orla da zona sul carioca em 2022. Exatos sete anos antes. Ele parecia ouvir os gritos, as pessoas correndo, e na tv, na internet, era possível acompanhar as mortes, as enchentes, incêndios, caos. O Rio se isolou. A população foi para as ruas e tomou o poder. Abandonado. Subúrbio ás escuras eternamente. E assim era em todas as partes do mundo. Porém, aquele tremor era diferente. Era seco, e vinha acompanhado com o que parecia um enorme rugido.
Maurício sorriu. Por um momento chegou a imaginar que, com o rumo das coisas que antes só se viam nos filmes acontecendo na vida real, não seria ser aquele um rugido de um dinossauro saído de algum portal maligno do tempo. Mas ele concordou consigo mesmo se tratar de absurdo demais. Então, o tremor voltou. Ele pode ver o porta retrato ao seu lado se espatifar no chão. Ele não sentia mais medo. Sua família já tinha morrido no terrível incêndio que desolou Realengo, e ainda assim, acompanhou a morte de seus pais, diante de seus olhos, arrastados pela correnteza de Copacabana pós-Tsunami. Ele pegou o porta retrato e sentiu seus olhos marejarem. Era sua foto com Jaqueline, sua esposa. Ela simplesmente sumira. Ele não sabia quando ou para onde fora. Ela simplesmente sumiu, como que em um piscar. No começo ele não acreditou. Mas depois, achou se tratar de mais alguns absurdos. Como se os contos de livros fantásticos sobre abdução e arrebatamentos estivessem sendo realizados diante de seus olhos também.
Então ele ouviu o estrondo novamente, seco, e agora bem mais perto. A casa tremeu inteira, a tv balançou e caiu sobre os jornais no chão. Gritos se misturaram. Ele então correu para a janela, e pode ver pessoas. Fazia tempo que não as via. O céu estava cinza, e as aves pareciam fugir. Lá embaixo, as pessoas corriam como formigas. Corriam como baratinhas tentando fugir quando alguém acendia a luz da cozinha na sua infância. Então, Maurício pode ver o que parecia ser um enorme dedo indicador passar por cima do prédio à sua frente. Ele se impressionou, e deu um passo para trás. Depois, viu de relance algo que parecia uma enorme orelha com pelos saltando de seu ouvido, acompanhados por enormes manchas vermelhas. E então, ele viu dentes.
Maurício abriu a porta de seu apartamento, encontrando dificuldades para fazê-lo. Subiu correndo alguns lances de escadas até que chegou ao terraço do edifício. O cheiro de podre lá em cima era forte. Alguns corpos em decomposição, provavelmente de moradores, secavam ao sol e ao vento. Ao chegar na beirada, ele pode ver uma enorme silhueta se formar diante de seus olhos. Uma silhueta absurdamente grande. Ela estava escondida dentro da nuvem de poeira, mas ele podia reconhecer que se tratava de um homem, um homem muito grande. Alguém que ele poderia chamar de gigante.
De repente a silhueta fez um movimento brusco, e um carro passou por cima da cabeça de Maurício. Assustado ela primeira vez em anos, e buscando forças diante da falta de energia devido a má alimentação e poucas noites de sono, ele desceu os dezoito andares correndo e saiu na rua. O cheiro de podre era dividido entre o cheiro de mar, sangue e maresia. As ruas estavam destruídas. Corpos, carros, animais e muito lixo ornamentavam o cenário apocalíptico. Maurício corria sem saber para onde. Apenas tentava ter um rumo para fugir dos tremores e dos rugidos que o gigante soltava.
Ele chegou na orla. Lá tudo era cinza. Quiosques destruídos pela força das águas, vento e tempo. E ao longe, ele pode ver uma fila do que seriam gigantes. Do Leme até o Vidigal, ele podia ver as silhuetas gigantescas caminhando como em marcha. A marcha do fim. Sua vida foi passando diante de seus olhos. Sua infância na Tijuca, as idas aos cinemas, suas namoradas, e Jaqueline. Seu grande amor que se foi sem mais nem menos.
Maurício não sabia o que fazer. Tudo estava deserto. Os gigantes ao longe pareciam vir em sua direção. Atrás dele o mar. Na frente, prédios destruídos, sem vida, carregados pela força das águas. Ele estava assustado. Achava que já tinha visto de tudo, perdido todos seus amores e amados, porém agora, a coisa estava surpreendente demais, como o último capítulo do livro que acabara de ler, revelando ser o juiz o assassino de todos os personagens convidados para o misterioso jantar.
Ele então se virou para o mar. Os estrondos pareciam mais perto. Olhou para o lado, e perto de seu pé uma poça d’água fazia ondas a cada passo dos grandiosos e fantásticos monstros gigantes.
Maurício estava acostumado com tragédias. Desde sua infância vivenciou muitas pela tv e ao vivo. Mas ali, diante de seus olhos, o fim parecia se aproximar. Como um grande chefe de videogame. O absurdo que ele tanto acompanhou. Iria por fim na sua trajetória.
Então correu na direção do mar. Desviou de corpos e do lixo amontoado na areia da praia de Copacabana. E então ele se pôs a nadar. Nadou até perder o fôlego. Nadou até o mar ficar pesado. Nadou até tudo ao seu redor ficar escuro.