A aldeia

Havia uma aldeia. Ninguém sabe ao certo sua localização. Ficava numa clareira no meio de uma floresta em algum lugar do mundo, longe de tudo. Uma aldeia com doze casas. Doze famílias moravam nessas doze casas. Cada família com quatro pessoas. Um casal pais de um casal.

Desde que o mundo existia que a vida se processava dessa forma naquele lugar. Os casais sempre tinham um filho e uma filha, que em determinada idade se casavam com os filhos de outros casais e o ciclo continuava infinitamente. Tudo acontecia tão estranhamente sincronizado, que os filhos homens eram sempre dois anos mais velhos do que as filhas mulheres. Quando os meninos completavam dezesseis anos, se casavam com as meninas que completavam quatorze. E quando nascia um filho de um dos jovens casais, morria um dos anciãos, que era como eram chamadas as pessoas mais velhas, embora não fossem tão velhas assim. Desse modo a quantidade de pessoas continuava sempre a mesma.

Foi sempre assim. Nunca ocorreu uma pequena mudança. Mas uma estranha profecia, escrita na parede de uma escura caverna, com símbolos incompreensíveis, eles não sabem que ela está lá, mas está e diz que, dois frutos, grudados um no outro, como se fossem um apenas, numa árvore muito nova para frutificar. Dois em um, um em dois, mudarão as estações e transformarão a cor da água e o gosto de tudo. Todas as árvores perecerão. Todos os frutos perecerão. O sangue correrá como um rio corre, denso, trazendo o fim de uma era e o início de outra.

Mais uma geração surgiu, como sempre, filhos e filhas, casais perfeitos em sua normalidade, tornando possível aquele círculo perpétuo. As crianças cresceram e se casaram, quando nascia um filho, morria um avô ou avó e tudo ocorria como de costume. Até que a mais jovem de todas as meninas da aldeia engravidou. Não havia nada de errado, até o dia em que ela deu à luz a dois filhos em vez de um. Dois meninos. Os meninos sempre nasciam primeiro, mas nunca, em tempo algum, dois de uma vez, nunca gêmeos, iguais e saudáveis, ou de qualquer outro jeito, que em um mundo perfeito representariam o mais alto grau da perfeição.

O assombro foi geral e o medo se apossou de todos. No mesmo instante, morreu um dos adultos, como sempre acontecia, mas naquele dia isso não era suficiente para que a paz reinasse. A conta estava errada, havia gente demais, alguém estava sobrando. Fizeram uma reunião às pressas, os anciãos, e decidiram que o certo era sacrificar uma das crianças.

O pai das crianças relutou, mas se viu obrigado a aceitar, eles fariam de qualquer jeito. Caberia à mãe dos meninos decidir qual seria sacrificado. A mãe, uma menina ainda, quis defender, apenas com o instinto, seus filhos. Não deixaria que sacrificassem nenhum deles. Gritou alto, bradou que ninguém tocaria em suas crianças. Falou entre soluços todas as razões que julgava ter e, por fim, balbuciou que não matariam um de seus filhos. Ela foi perdendo a força e viu, desesperada, que não havia solução para aquele caso. Entregou os pontos e disse, enfim, que escolheria um, mas que precisava de um tempo. Ela teria até as doze horas do outro dia para decidir, disseram os anciãos. Tudo resolvido. Tudo voltaria ao normal. A vida seguiria seu curso e a aldeia permaneceria a mesma, intacta, pelos séculos afora.

O dia ia passando como sempre passava, os homens nas lavouras, caçando, pescando... as mulheres cuidando das casas, amamentando os filhos, fazendo as tarefas costumeiras. Enquanto isso a mãe dos gêmeos olhava para os meninos com ternura e temor. Procurava sinais que mostrassem qual deveria ser sacrificado, não que ela quisesse isso, mas se tinha de ser feito, ela faria. Ali ninguém retrocedia ou voltava o que havia dito, pelo bem de todos, qualquer sacrifício valia a pena. Eles eram tão novinhos, não havia qualquer sinal, qualquer vestígio, apenas dormiam e mamavam, alheios a tudo, à inquietação de todos e, principalmente, ao desespero da mãe. A menina teve um vislumbre, algo lhe ocorreu e um sorriso surgiu em seus lábios finos. Ela olhou atentamente para os filhos e escolheu um, marcou-o com uma fitinha vermelha amarrada ao bracinho magro do recém-nascido. Ia dá certo, salvaria seus filhos e a aldeia.

O sol se refugiou entre as árvores e a noite chegou, cantando como pássaros sombrios, uma melodia de tempos que ainda não existiam. Todos se recolheram, as fogueiras se apagaram e o vento suspirou num lamento, dores antigas como as estrelas que teimavam em brilhar.

Na madrugada, escura e fria, uma menina sai de uma das casas, leva um pequeno cesto, anda com dificuldade, mas convicta. Entra na mata sombria, pega uma trilha, olha para dentro do cesto, sorri e chora ao mesmo tempo, faz uma prece sem saber para quem, mas faz mesmo assim, entre os dentes, quase forçada. Chega enfim às margens de um riacho. A água corre macia e reflete a luz das estrelas que desembocam para um lado do céu. A menina-mãe olha para o neném no cestinho, o seu neném, seu filhinho, enrolado em trapos, dormindo o sono dos inocentes. Beija demoradamente as bochechas lisinhas do filho e depois o coloca sobre a água, faz um movimento e o cestinho segue a correnteza. Um barco de sonhos com uma pequenina carga de esperança.

A menina volta para a aldeia, entra na casa sem ser percebida, deita-se ao lado do outro filho, o único. Enquanto isso, no riacho, um movimento forte nas águas faz o cestinho quase virar. O menino ainda dorme, mas algo vem ao seu encontro. Poderia ser um jacaré ou mesmo uma cobra, mas num mundo tão remoto, qualquer fera desconhecida poderia ser. O monstro se aproxima rápido, abocanha o cesto e estraçalha a criança com tudo, depois some nas profundezas do rio primitivo.

Quando amanheceu, antes mesmo que percebessem que um dos gêmeos havia sumido, as pessoas viram que a água do riacho estava vermelha, de um vermelho escuro e pegajoso, os peixes estavam mortos e toda a vegetação parecia seguir o mesmo caminho, murchavam as folhas e o verde desaparecia.

Ao meio-dia morreu o outro gêmeo e a mãe, desesperada, correu para o rio e se jogou na água de sangue, mergulhou, buscando o filho perdido. Seguiu a correnteza e desapareceu.

O desespero invadiu a cabeça de todos e o fim chegou em poucos dias, a fome e a sede os matou, pois nada mais frutificou e a água não mais ficou limpa. Um temporal varreu os vestígios da aldeia, levou o que restou das casas e limpou a água do rio. O silêncio reinou depois da chuva.

João Barros
Enviado por João Barros em 24/01/2019
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