1084-O CAÇADOR E A RENA DE PAPAI NOEL

A conversa no bar do Ananias estava muito animada. Era um boteco da periferia de Vento Leve, onde se reuniam os velhos amigos de pescarias e de caçadas. A reunião era prestigiada, sempre, por Jeremias, o mais famoso caçador daquelas bandas. Nos seus mais de 50 anos como caçador (começara cedo, na juventude) já havia caçado cobras e lagartos, animais pequenos e grandes. Pacas, tatus, cotias, sim. Bichos de pêlo, de escama e de penas. Codornas sem conta já havia caçado, assado e comido pelos campos de suas expedições. Caça esperta, como veados, lobos-guarás e porcos-do-mato. Animais mansos e indefesos, como preguiças, antas, tamanduás. E perigosos, também, que Jeremias não era caçador de deixar um animal escapar da mira de sua espingarda: gatos-do-mato, jaguatiricas, onças. Sua casa era “enfeitada” com as peles, cabeças empalhadas e retratos que mostravam suas proezas.

Naquela noite, após muitos “martelos” de pura cachaça, Renato, que era bom de pescaria mas não gostava de caçadas, levantou-se e gritou:

— Aí, Jeremias, CE já caçou tudo quanto é bicho, mas eu queria ver é você caçando uma rena do Papai Noel.

Todos se calaram por momentos. Poucos entenderam o desafio. Jeremias não entendeu nada.

— Que bicho é esse? — Perguntou Jeremias.

Creio que nem mesmo o desafiante Renato sabia direito do que se tratava, ouvira aquilo numa propaganda de radio, que a carruagem do Papai Noel era puxada por seis renas, e assim, sem mais nem menos, lançou a provocação.

Foi o dono do bar quem esclareceu devidamente:

— Deixa de besteira, Renato. Todo mundo sabe que Papai Noel não existe, nem esmo aqueles viadinhos que puxam a carroça dele. É tudo invenção.

Jeremias ainda continuou sem entender, mas quando ouviu a palavra “viadinhos”, sentiu-se insultado. Já caçara veado campeiro, veado do Pantanal, veado galheiro, mateiro e até o raríssimo veado bororó. Sentiu-se ofendido.

—Onde é que encontro esses viadinhos? Nunca ouvi falar deles?

Renato continuou no desafio e disse:

— Não fica longe, não. Na mata do Rio Grande, ali pelas bandas de Capítólio, subindo pela serra do Chapadão... Mais porém, ele só aparece na véspera do dia de Natal. Depois some, só no ano seguinte.

— Pois pode escrever que no fim do ano ocêis vão ver essa tal rena de Papai Noel mortinha da silva. Num me escapa não.

Não houve argumento que tirasse essa caçada da cabeça de Jeremias.

No começo de dezembro ele começou a se preparar para a caçada. Com mais cuidado do que das vezes anteriores. No dia 24, pela manhã, colocou a tiracolo a espingarda que já estava limpa de véspera e no embornal foi colocando a matula, mais uma caixa de munição, a faca, o canivete, algumas palhas secas de espiga de milho e um pedaço de fumo. Não passava sem seu cigarrinho de palha durante as longas horas de espera em suas caçadas.

O velho jipe, testemunha de centenas de caçadas, atendeu de pronto à demanda de Ananias, que o dirigia com perícia por caminhos jamais atrevidos por outros motoristas.

A madrugada escura era iluminada apenas pelas estrelas e pelos faróis do jipe, quando ele se pôs a caminho. Aquela caçada iria ser a mais importante de sua vida.

Era um caçador solitário. Não gostava de companheiros e tinha seu método particular de caçar. Paciência, muita paciência, horas de espera, escondido, fumando seus cigarrinhos de palha, matutando na vida. Atento ao menor movimento denunciador da presença do animal que pretendia abater com tiro certeiro.

Lá vai, portanto, o famoso caçador na busca de mais um troféu. O dia clareava quando passou por Capitólio e começou subir a serra, adentrando-se na mata por uma trilha que terminou uns poucos quilômetros adiante, num local conhecido como Mesada do Lobisomem. Os colegas de caçada diziam passava tudo quando é tipo de seres sobrenaturais. Bruxas, assombrações, o Saci-Pererê, a Maria Engomada.

Enquanto encostava o jipe numa sombra de um alto pequizeiro, ia pensando:

“É um besteirol sem fim. Todo mundo fica imaginando coisas, histórias, mas nunca vi um fantasma, nem duende, nem nada. Alguns falam que Papai Noel existe, outros falam que não. Hoje vou tirar a prova".

Era um descampado tranquilo, com umas arvores no meio indicando uma nascente. Foi até lá e viu marcas de muitos cascos, e, sim, cacos de veados por todo o redor do poço que a água formava antes de correr rumo à nascente do rio São Francisco, que não ficava longe.

Jeremias escolheu um local para apoito, isto é, o lugar de espera, ao alcance do tiro da sua espingarda.

Desta vez, sua empreitada é especial: irá caçar uma rena. Animal difícil, espécie de veado com uma galhada enorme.

Havia procurado informações sobre o tal alce do Papai Noel, mas só Renato é que soube lhe informar alguma coisa, produto de sua imaginação, a fim de dar prosseguimento ao desafio.

— Elas, as renas, são uma espécie de veado muito forte, de grande galhada e arisco demais. Pertencem ao Papai Noel que usa elas prá puxar o trenó do velhinho, carregado de presentes. — Informou mais Renato — Ninguém jamais se atrevera a caçar uma rena, pois havia um profundo respeito pela lenda.

“Que cambada de gente boba. Se Papai Noel não existe, como é que os viados lhe pertencem? Uns velhos caducos que ainda creditam em Papai Noel, numa carroça puxada por renas. Vou caçar uma e mostrar pra esses panacas quem é Jeremias. Vou ser o caçador mais famoso deste mundo!”. —

Picando o fumo para o seu primeiro cigarrinho de palha, o caçador segue a trilha. Encontra um lugar apropriado, detrás de uma pedra, onde pode ver com clareza o pequeno lago onde os viados por certo, apareceriam.

Acomoda-se sentando no capim macio e prepara-se para as horas de espera. Pouco sabe sobre renas, a que horas elas pastam, se vêm juntas ou não. Enquanto espera, vai pitando seus cigarrinhos, um após o outro. Antes de terminar um, faz o outro, que acende com a bira do cigarro, pitado até o final. A ponta lhe queima os dedos, de tão pequena.

Fumar é uma maneira que ajuda Jeremias de passar o tempo e espanta também os mosquitos. Aliás, o fedor dos cigarrinhos de palha espanta qualquer bicho, até pessoas. Talvez seja devido à catinga dos cigarros o motivo pelo qual ele nunca teve companheiros. O mau cheiro está na boca, nos dedos, na roupa, e até nos cabelos, porque ele passa constantemente os dedos manchados de fumo na cabeça, num gesto de tirar os cabelos da frente dos olhos.

Pelas quatro horas da tarde, o caçador está impaciente. Já manducou duas vezes, tomou água de seu cantil em mais de uma dezena de ocasiões e ao seu redor estão tocos de cigarro e palitos de fósforos usados para acender seus terríveis “mata-ratos”. Apesar da impaciência, não tira os olhos da estrada e da matinha.

Então, vê! Saindo da sombra das árvores, vinda pela estrada, uma rena! Para Jeremias, não passa de um veado com chifres muito grandes. Tem o porte garboso, caminha calmamente, descendo a estrada, na direção onde o caçador espera, escondido.

Vem chegando, calmamente. Não tem pressa.

“O bicho deve tá de papo cheio, não vem pastando. Quando chegar mais perto...

Preparando-se para atirar, encosta a arma no ombro e olha atentamente, mirando o peito do animal.

Quando está à distância do tiro, a rena pára, de repente. Fareja o ar. Sente qualquer coisa de estranho. É a catinga de fumo dos cigarros de Jeremias que lhe chega às narinas. De faro apurado, a rena se vira, dá meia volta, dirigindo-se para a mata, de onde saíra. Ele vê a caça indo embora, não tem tempo para mais nada, firma a espingarda, puxa o gatilho e... PUM!

O tiro atinge o animal, que tomba na estrada. Sem esperar por mais nada, Jeremias corre na sua direção. Mas antes mesmo de chegar perto, eis que surge, vindo da mata, um velho vestido de roupa vermelha, botas, um gorro esquisito na cabeça. Corre também na direção da rena abatida.

Encontram-se ao pé da rena imóvel, no chão.

— Seu estúpido idiota! — O velho está vermelho de raiva, seus olhos faíscam como duas brasas. — Veja o que você fez! Agora, como vou distribuir os presentes nesta noite de Natal?

Jeremias está bestificado. Reconhece no velho uma figura da qual há muito se esquecera. Que, aliás, pensava ser história para engambelar crianças.

— Mas...mas... é o Papai Noel?

— Claro, seu porqueira. E você me faz esta besteira logo hoje, meu dia mais ocupado do ano.

— O senhor me desculpe, eu não sabia...— o caçador começa a se desculpar.

— Não sabia! Não sabia! É sempre assim. Vocês acreditam em mim quando são crianças, depois crescem, acham que sabem de tudo, e me esquecem. Alguns até me desprezam.

— Esta rena... era sua?

— Claro. Ela e mais aquelas três que estão ali, tá vendo? Estava justamente ajuntando as quatro para atrelá-las ao meu trenó. Tenho que sair logo, pois nesta noite de Natal tenho um monte de presentes para distribuir no mundo inteiro.

O caçador olha para o lugar apontado pelo Papai Noel e vê mais três renas, iguaizinhas à que está abatida, a seus pés.

Ao ver a situação desesperadora de Papai Noel e sentindo remorsos por ter abatido a rena, Jeremias tem um acesso de tosse. Sempre que ficava emocionado era acometido por um desses acessos. Devido aos milhares de cigarros que fumara. Começou a tossir, tossir, não parava mais. Tossindo, punha as mãos no peito, sentindo uma falta de ar. Tosse seca. Revira-se, agacha-se, senta-se no chão. A tosse não passa. Tosse e tosse, até que, cansado de tanto tossir, deita-se no chão. Tosse, tosse e tosse até desmaiar.

Papai Noel ficou ali, sem saber o que fazer. Eis que chega, pulando numa perna só, um negrinho muito esperto.

— Que aconteceu, Papai Noel?

— Este estúpido caçador abateu minha rena, Saci. Agora não posso distribuir os presentes. Nunca me aconteceu coisa igual. Não sei o que fazer.

Saci Pererê, sempre pulando na sua única perninha, chega perto da rena, examina e diz:

— Ela num tá morta, não. O tiro passou de raspão. Ela tá assim desmaiada é por causa do fedor de cigarro do caçador.

E agachando-se perto do caçador, o Saci comenta:

— Agora, esse aqui, num tem jeito, não. Já bateu as botas. Morreu de tanto fumar.

Saltitante, o Saci fala pro Papai Noel:

— Espera um momento, vou ali na mata pegar uma erva e já volto.

Pula que pula, numa rapidez incrível, o Saci some na matinha. Volta daí a instantes com alguns ramos, um cipó e uma flor amarela.

— Esta é a erva cura-tudo. Vamos passar na ferida da rena, ela vai sarar.

Dito e feito. Assim que o Saci esfregou as folhas na orelha da rena, onde a bala passara de raspão, ela abriu os olhos e levantou-se, como se nada tivesse acontecido. Papai Noel abraça o Saci, agradecido.

— Obrigado, Saci, obrigado. Não sei como lhe agradecer esta cura.

— Ara, Papai Noel, não foi nada. Mas se o senhor deixar, eu gostaria de ir no trenó, ajudando na distribuição dos presentes.

Enquanto conversavam, a rena chegou perto do caçador e começou a lamber seu rosto. Jeremias não tinha morrido, como o Saci falara. Estava num ataque de falta de ar, muito comum a fumantes inveterados. Suas faces estavam púrpuras, e ele não se mexia. Parecia mergulhado num profundo sono.

Devagarinho, a consciência foi voltando a Jeremias. Abriu os olhos, mantendo o corpo imóvel. E a rena lambendo seu rosto.

Aos poucos, voltou a respirar normalmente e acordou. Sentou-se no chão. Papai Noel e o Saci Pererê se aproximaram. Ajudaram-no a se erguer.

O foi grande, ao ver Papai Noel e o Saci, duas pessoas que jamais pensou que veria.

Sentindo um grande alívio, abraça o velhinho e o pretinho e afaga a rena. Uma grande transformação havia acontecido em seu coração. Agora olhava a aquele veadinho tão manso e dócil com os olhos de uma criança. Gostaria de ter aquela rena só para si, para alimentá-la e dar-lhe trato.

Papai Noel sentou-se ao seu lado, e o Saci ficou pulando ao seu redor.

— Meu amigo, desculpe-me se fiquei zangado com você a ponto de lhe causar este desmaio. Pensei que você tinha matado minha rena.

— Era o único animal que não havia caçado. Agora reconheço quanto mal fiz aos animais que matei, às suas famílias, às crias.

Levantando-se, pegou a espingarda e de repente, bateu com a coronha no tronco de uma árvore, despedaçando a arma.

— Pronto, agora não caço mais.

E pegando uns cigarrinhos de palha que tinha no bolso, jogou-os no chão e os pisoteou,.

— Pronto, agora não fumo mais.

Erguendo a mão, foi-se afastando do Papai Noel, do Saci e da rena, sem se despedir.

Desde então, Jeremias nunca mais matou animal algum. Nem um mosquito ou uma formiga.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 3 de setembro de 2018.

Conto # 1084, da Série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/12/2018
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