A loucura do mar
De uns tempos pra cá, não se sabe bem quando, começou a sentir coisas pelo corpo e pelas vistas e pelas entranhas. Coisas estranhas tais que atordoava até mesmo a segurança do viver. Mexia antes de tudo em seus breus, nas suas certezas. Sentia friezas, dores, impulsos, tremores. Sentia as intensidades do mundo. Mas ainda assim só afetava o corpo. De uma hora pra outra, sentiu as vistas. Seus olhos, assim do nada, começaram a produzir imagens fantasiosas. Via pessoas caminhando em casa quando estava a sós, aviões saindo por janelas de edifícios, camaleões a voar, elefantes e estrelas a brotar na copa de árvores, riachos a inundar a imensidão do mundo. Era a loucura que lhe chegara. Tornou-se louco a produzir irrealidades poéticas. Desafeito a médicos e às suas medicinidades, construiu uma canoa com mãos próprias e um tanto de madeira nativa. Despediu-se da mulher e dos filhos com poucas palavras, todas tristes, e foi viver no meio do mar, a nunca mais voltar. Eles, engolidos pela agonia da loucura alheia, iam até a praia, acenavam, lhe viam ao longe e deixavam-lhe comida na areia, na esperança da volta. Os dois filhos cresceram e a mulher enrugara as dobras da face. Em tão pouco tempo morreram de melancolia. Ele ficou lá, no meio do mar, sozinho, já de cabelos longos e brancos, a barba a revoltar e as unhas a lhe crescer. Já não existia, e a loucura lhe tomou por completo, em meio à água salgada. Ficou lá e um dia a morte lhe chegou, mansa, pacata, depois de muitos anos. A canoa, sozinha, ainda viveu e viveu, mantendo a poesia solitária da loucura do mar. Nunca se soube o quanto as ondas viveram pra ver. Mas se sabe que este mar nunca foi o mesmo.