Vivo no voo

Mil e cinco, mil e quatro, mil e três, mil e dois, mil e um...

E mergulhou no ar para mais um salto, depois que todos os alunos já tinham saltado do avião para suas primeiras experiências no ar. Já havia perdido a conta de quantos saltos foram, depois de quase cinquenta anos subindo aos céus em aviões para descer de fora deles tão rapidamente.

Aos vinte e dois anos foi destacado para participar da segunda grande guerra realizou os primeiros saltos para combater, comandando seu pelotão em saltos por trás das linhas inimigas.

Ao final da guerra, passou a ensinar sua técnica o que também passou a ser sua fonte de renda durante os estudos em medicina.

Especializou-se em oftalmologia e começou a ganhar dinheiro com suas consultas e cirurgias e após os vinte e cinco anos na carreira, decidiu encerrá-la e passar a cuidar da família, da esposa doente com câncer, mas sem abandonar o paraquedismo.

Estava próximo de completar setenta anos, mas ainda sentia imenso prazer a cada novo salto, quando sua adrenalina atingia níveis de compensação do risco para aquela atividade.

Após os primeiros segundos da saída do avião conferiu se todos os alunos já se flutuavam no ar.

Preferiu prorrogar por alguns segundos seu voo livre, podendo imaginar um garoto em um quintal, tentando empinar uma pipa e jogando futebol com seus amigos.

Recordava quando, ainda moço, saía para trabalhar com seu pai, de madrugada, na banca de peixes do mercado municipal. Mais alguns segundos e via aquele homem pronto para a vida, formado em medicina e preparando-se para casar e começar a criar família.

Depois via o homem cercado pelos netos no mesmo quintal e embaixo de uma frondosa jabuticabeira contava suas aventuras da vida.

Era querido e tratado sem distinção com muito carinho por todos que sempre estavam à sua volta para ouvir as histórias que nunca se repetiam.

Chegou o momento de puxar a alça e abrir seu paraquedas passando a descer mais devagar e podendo apreciar melhor aqueles instantes ao sabor do vento, antes de retornar à realidade.

Enquanto ajustava seu equipamento para o pouso, pensava em como sua vida passara tão rápido e comparava aqueles momentos do salto aos seus anos vividos.

Conquistara tudo que quis e sentia-se muito feliz da vida, mas percebia que seu fim estava próximo a cada segundo que passava e aproximava-se do chão.

Seu corpo estava em forma, seu espírito cada dia mais renovado, mas sabia que seu tempo estava expirando-se e que em breve não saltaria mais para a vida.

Seus saltos pareciam acariciar a vida enquanto brincava no tempo, pois enquanto estava no céu não pensava na morte que o aguardava aqui na terra.

A notícia do médico ainda não havia sido totalmente digerida e ele tentava não pensar em como seria sua morte, que segundo o médico seria uma questão de seis meses a um ano de sobrevida.

Um pequeno fragmento de uma granada em seu crânio e que não foi retirado na época da guerra, agora poderia ser a causa de um tumor no cérebro e o tratamento para sua cura indicava uma chance mínima para sua vida.

Sua decisão imediata foi de não contar para sua família, temendo um sofrimento prematuro a todos.

Decidiu assim levar sua vida normalmente até seu fim.

Algumas vezes sentia um pouco tonto em razão dos medicamentos prescritos para reduzir as dores, dava desculpas de que era uma simples dor de cabeça e retirava-se de onde estivesse para medicar-se e evitar suspeita sobre sua doença.

Mesmo surpreendido por um dos seus filhos enquanto ingeria um medicamento preferiu dizer-lhe que era apenas um mal-estar e que não comentasse com seus irmãos o fato, para que ninguém preocupar-se sem razão.

Mas passava a perceber que as dores eram cada vez mais constantes e de intensidade maior o que passou a causar-lhe muitas náuseas, principalmente durante o voo antes de saltar de paraquedas.

Quando já estava a ponto de saltar e as lâmpadas sinalizadoras eram acesas, suas dores desapareciam, sentindo um alívio ao sair do avião e cair na imensidão do vazio, seus olhos vasculhando o ar, mas pensando na sua vida presa à terra e que aos poucos se desprendia de seu corpo.

Apesar da idade e da insistência de alguns colegas, só realizava saltos livres, e a partir da notícia de sua doença, chegou a saltar sem o paraquedas de emergência,o que lhe valeu a ameaça de ser excluído do clube de paraquedismo.

Alegava que por ser experiente poderia dispensar o equipamento, mas não houve quem aceitasse tal argumento, obrigando-o a usar o equipamento reserva.

Um dos colegas mais antigos chegou a interrogar-lhe sobre sua saúde, mas também nada obteve sobre sua doença.

Parecia que desejava morrer no céu ou se não fosse possível que morresse numa queda livre por alguma falha em seu equipamento.

Não conseguia aceitar a realidade da doença que passou a ser companheira indesejável nos saltos. Por várias vezes mergulhava de cabeça durante todo tempo de descida livre, imaginando que estava livrando-se do tumor na medida em que sentia a sensação cada vez mais forte da velocidade com que rompia a barreira de ar com sua cabeça.

Ao retomar seus pensamentos percebia que ao contrário das amarras de seu paraquedas seu tempo escorria entre as mãos, mas alegrava-se em lembrar de que muitos dos seus planos foram realizados e poucos ainda permaneciam dissipados no ar.

O ano de 1992 estava por terminar há poucos dias e seus filhos programavam uma festa como nos anos anteriores, pois acostumados com a falta da mãe, passaram a encontrar-se sempre nessa data, para manter viva a tradição da família e tentar suprir a falta que todos sentiam dela.

Com a saúde abalada devido ao hábito de fumante, faleceu há quinze anos, depois de sofrer por quase dois anos de tratamento o convívio com o câncer no pulmão.

Desde então, ele resolveu seguir a vida sozinho, buscando em seus saltos a compensação pela perda da esposa e companheira.

Ela que o incentivava durante tantos anos na prática do paraquedismo, mas que aguardava ansiosa por sua volta em segurança a cada partida para o salto.

Ficaram as lembranças dos bons momentos juntos e a saudade eterna.

A primeira vez que ele conseguiu convencê-la a saltar com ele foi uma vitória para ambos, pois a partir de então ela sempre saltava quando havia uma oportunidade, nos saltos para demonstrações ou nas folgas de suas instruções.

Foram dezoito anos de muita felicidade e realizações na família, lutando juntos para educar os filhos e construir um bom patrimônio como a fazendinha de que todos gostavam e aproveitavam juntos.

Agora uma nova luta se iniciava. Muito diferente de sua experiência durante a guerra da qual ele participou, testemunhando muitos colegas não retornarem dela, ou simplesmente retornarem sem alma ou sem alguma parte do corpo.

Às vezes imaginava que a sensação causada pela sua doença era a mesma sentida por aqueles que de alguma forma se perderam naquela guerra e que agora chegara sua vez.

Brevemente iria tombar como tantos que já havia testemunhado.

Sua imagem no espelho que era rara de ser vista, agora denunciava a realidade.

Já não se barbeava diariamente como a vida militar o exigia e os ombros caídos começavam a denunciar sua idade e para quem o conhecia, já transparecia que algo não ia bem.

Pensavam que era a solidão e por isso passavam a procurá-lo para algum programa com mais frequência, o que começava a incomodá-lo, pois temia que a situação sobre sua doença tivesse sido descoberta.

Ao deitar-se pensava em não acordar no dia seguinte, para evitar a realidade de um enfrentamento para o qual nunca se preparara: a morte.

Mas sabia que o pior ainda estava por vir, a luta contra a doença que ele conhecera durante o calvário de sua esposa.

Apesar da boa condição financeira, sabia que a dor e o definhamento do corpo estavam prestes a limitar suas atividades rotineiras.

Buscava esperanças em consultas com outros médicos, mas em duas vezes o primeiro diagnóstico era confirmado por outros especialistas e ele passou a encarar a realidade e a preparar seu espírito para a morte.

Decidiu então enfrentar sua luta de maneira solitária, pois queria manter a felicidade da família pelo maior prazo possível, já que agora era a referência dos netos e filhos após o sofrimento pela perda da esposa.

Queria também que sua condição de exemplo continuasse a ser seguido de maneira inabalável e não iria fraquejar por causa de qualquer doença.

Assim, voltava-se para seus saltos, concentrando-se cada vez mais nos detalhes que passavam despercebidos durante tantos anos atravessando os céus em suas quedas livres e após a abertura do paraquedas.

Sua precisão em atingir os pontos de descida era cada vez maior e em níveis de acerto nunca alcançados, nem mesmo quando esteve participando dos campeonatos de saltos de para quedas.

Tudo pelos últimos meses de vida que a cada final de dia era apreciado na varanda do velho bar do alto do clube de paraquedismo, de onde se via um magnífico por do sol, refletindo seus últimos raios na extensa praia e normalmente encerrava seu dia junto com colegas de profissão, que frequentavam o bar para uma cervejinha com os tira-gostos do português ou o famoso filé de bacalhau grelhado com um bom vinho.

Aquele lugar existente há mais de trinta anos, mistura de bar com restaurante típico português, comemorou sua despedida de solteiro, o nascimento de todos os filhos e netos e muitas ocasiões que mereciam ser comemoradas por todos que ali passavam.

Sua esposa que apreciava tanto o local acabou tornando-se amiga inseparável da mulher do português e com outras esposas fundaram o clube do paraquedismo, passando a cuidar de tudo que tinha a ver com os encontros sociais daquele local.

Sua morte trouxe ao local um ar de jazigo perpétuo e apesar de seu nome ter sido homenageado passando a nomear o local, a alegria passava longe dali, perdendo-se o espírito de confraternização até então existente.

Passou então a ser ponto de encontro de viúvos ou outros que por algum motivo sentiam-se solitários.

Uma vez ou outra as turmas de novos alunos reuniam-se para comemorar o primeiro salto ou o aniversário de alguém, mas a prioridade para outros compromissos impedia a manutenção do clube até então existente e aos poucos o folclore do lugar ia se perdendo no tempo.

No início da noite das sextas-feiras, quando os saltos eram suspensos para descanso ou por condições atmosféricas desfavoráveis, telefonava para seus netos, avisando que o fim de semana seria no sítio.

Todos compareciam, quase sempre deixando outros compromissos, festas ou o que fosse para estar com ele, pois sua companhia, histórias e sua alegria contagiavam a todos e poucas foram as vezes que a casa recebia menos de trinta pessoas, pois cada um sempre trazia algum amigo para compartilhar a alegria da família.

Reuniam-se para pescar e a farra era tamanha que o peixe sempre era esquecido.

Quando chovia, todos se aninhavam em torno do fogão de lenha, apreciando algum quitute e ouvindo suas histórias ou anedotas.

Se estivesse frio iam para perto da lareira ou faziam enorme fogueira no pátio atrás da casa e celebravam com muita comida e bebida aqueles bons momentos.

Para homenagear a avó, que por ter falecido ainda nova, poucos netos a conheceram e que fazia do avô aquela referência de bondade e paciência que todos se espelhavam.

Num desses finais de semana com a participação de todos, ergueram uma pequena capela em forma de gruta para homenagear sua avó e para aqueles que não a conheceram, uma foto vestida de paraquedista contrastava com a imagem da santa que a acompanhara em sua vida e nos seus dias finais durante sua doença.

Depois da capela pronta e abençoada pelo padre da cidadezinha próxima ao sítio, a festa começou com o tradicional churrasco no quiosque que normalmente durava todo sábado e só acabava no domingo, pois assim ninguém deixava de participar do encontro.

Participavam também das festividades do município e nas quermesses todos que se empenhavam em ajudar na preparação das comidas e prendas para arrecadação na festa.

A alegria e a união da família contagiavam a todos e a cada encontro no sítio o número de amigos se multiplicava e a felicidade transbordava aquele local.

Mas agora que algo estava por vir, ele não sabia o que fazer para iniciar essa nova e talvez a última etapa da sua vida.

Pensou em elaborar um roteiro para viajar com seus netos no mês seguinte, pois as férias escolares dariam a ele uma oportunidade para viajar com todos juntos.

Mas lembrou-se de seus súbitos mal-estares e isso não seria conveniente durante um passeio.

Passou a planejar viagens, mas não encontrava uma desculpa cabível para convencer seus filhos daquela ideia e que logo seria desestimulada.

Pensou em convidar uma amiga e sob o pretexto de começarem a namorar, viajar com ela e não mais voltar, tratando de sua doença longe da família e pensando que dessa forma evitaria o sofrimento dos seus filhos e netos.

Mas essa pessoa não existia e não haveria tempo para iniciar um romance naquela idade para simplesmente fugir para morrer.

Sabia do amor de sua família com ele, mas nada o fazia abandonar a idéia de morrer sem fazê-los sofrer pela sua doença.

Pensou em criar um acidente com uma de suas armas que mantinha em coleção, mas não havia como enganá-los e depois deixar todos ainda mais tristes sem saber por que havia se suicidado, pois além de exímio atirador, conhecia muito bem qualquer tipo de arma e jamais um acidente dessa forma seria admitido.

Afogamento no lago ou na piscina do sítio também seria improvável, além de ser uma morte difícil de explicar, de alguém que sempre nadou tão bem, sem contar que não deve dar certo suicidar num afogamento, sabendo-se nadar e estar querendo lutar contra a morte.

Depois de sofrer com tantas alternativas inviáveis para se morrer, pensou num acidente que durante toda vida aprendeu e ensinou a evitar: morrer da queda sem abertura do paraquedas.

Seria seu último salto, só que dessa vez para um local misterioso e que ele não sabia como chegaria lá, depois de arrebentar-se no chão.

Impulsionado pelo desespero, tomou a decisão de resolver dessa forma.

Obteve em fórmulas que ele conhecia uma droga a partir de mistura de alguns medicamentos, que o sedaria após a saída do avião e o impediria de acionar seu paraquedas durante um salto livre.

Manipulou a droga e testou-a antes, tendo ficado inconsciente em seu quarto por mais ou menos uma hora.

Faltavam seis dias para o salto que seria realizado em uma demonstração de paraquedismo.

Pouco comia e seus olhos sempre se enchiam de lágrimas quando estava com seus filhos ou netos, naquele último fim de semana no sítio.

Nessa semana, não procuraria ninguém e tentava de toda forma esconder-se de todos.

Parecia que já estava morto, sabendo o dia, hora e forma que deveria morrer.

Evitava a bebida para não denunciar-se naqueles momentos de desespero e utilizou a droga para apagar durante toda semana, ao se deitar, tentando fugir da vida.

É sábado, ele acorda, prepara seu desjejum, só que dessa vez pouco reforçado.

Ainda cambaleante de sono, prepara seu macacão de salto, colocando cuidadosamente a última porção da droga que o levaria para o chão e parte para o local da exibição.

Após estacionar seu carro, abraça a todos que estavam lá para saudá-lo e entra no avião.

Nem viu o avião decolar e já na porta do avião pronto para o salto, contempla o céu pela última vez e quando não sente mais o piso sob seus pés, retira a droga do bolso ingere e mergulha de cabeça pelos ares.

Dois dias depois acorda no hospital com gesso na perna direita e agradece a si mesmo pela força de seu subconsciente que o moveu daquela ideia, pois mesmo tendo tramado para que seu para quedas principal apresentasse defeito e ainda tendo ingerido a droga para apagar durante o salto, deixou-lhe uma opção de acionar o para quedas de emergência, pois sua coragem de viver sempre foi maior do que a de morrer.

Depois de quarenta e cinco dias no hospital e curado da perna, procurou o médico que o atendeu logo após sua queda inconsciente, para agradecer-lhe seus cuidados com ele.

Ele não era especialista em oncologia, mas sua fala era a de um experiente médico que disse saber de sua doença, por meio dos exames realizados devido sua queda. Descobrira também que ele havia ingerido alguma droga de efeito conhecido na medicina e que ele não deveria ter tramado tamanha monstruosidade.

Após uma conversa aberta, encorajou-o a realizar novos exames para verificar a extensão atual do câncer, mesmo sabendo que ele estava preparando-se para morrer de alguma forma.

Sua estada no hospital não fora nada fácil, pois nunca foi dependente de ninguém e passou todo aquele tempo sem locomover-se sozinho, contando com o auxílio de enfermeiros para realizar todo tipo de movimento.

Na primeira consulta com outro oncologista indicado pelo médico do hospital, recebeu a melhor notícia de sua vida; não havia presença de tumor maligno e o que aparecia agora era um pequeno tumor que poderia ser retirado sem maiores complicações e com um tratamento posterior eliminaria toda ameaça de um câncer com maiores traumas.

Ainda incrédulo do milagre que ocorrera com ele, fruto de sua capacidade inconsciente de sobrevivência, não entendia o que ele havia passado, mas o que a vida ainda lhe proporcionará de agora em diante será bem-vindo.

Mesmo após a recuperação da sua perna, recebeu recomendação para que interrompesse seus saltos de para quedas, até que sua saúde estivesse plenamente restabelecida.

Não havia motivos para furtar-se ao prazer de um último salto, pois reconhecia que jamais voltaria a estar apto para continuar sua prática.

Acertou com seu amigo piloto o dia e horário e lá se foram para os céus na busca de sua última aventura.

Dessa vez pediu que voasse por vários locais, demorando um pouco mais a chegar ao ponto combinado para seu salto, a uma máxima altitude que possibilitasse um vo livre com a maior duração possível.

Já não sentia o equipamento preso às suas costas, nem qualquer tipo de preocupação ou receio para aquele salto, pois faria desse um momento único, capaz de jamais ser esquecido.

Via claramente aquele garoto no mesmo quintal, tentando empinar uma pipa e jogando futebol com seus amigos.

À medida que ia caindo numa velocidade vertiginosa aquela imagem do garoto ia sumindo, até desaparecer por completo.

Num breve instante, já não sentia seu corpo em seu voo e apenas sua alma habitava o espaço entre o céu e a terra.

Ael
Enviado por Ael em 21/11/2018
Reeditado em 21/11/2018
Código do texto: T6508239
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