RATAZANAS
Deitado contemplo as inúmeras frestas do forro de meu quarto, obra da umidade, cupins, incapacidade. Há manchas aqui e acolá nas paredes do cubículo poeirento com duas portas precárias, uma sempre fechada ( a que dá para outro cômodo), a outra separa-me do quintal cimentado, recoberto por líquens e musgos. Um pequeno vitrô dá para esse quintal e uma cortina esverdeada e podre impede que toda luz solar se adentre. No quarto há uma escrivaninha minúscula e rústica, uma estante abarrotada de livros dispostos caoticamente e uma cama de solteiro: Eis o espaço de meu confinamento!
Às vezes um camundongo divide a exiguidade do espaço comigo, não me importo, contanto que não roa os livros. Aprendi a aceitá-lo, se existe deve ter algum préstimo, ainda que o desconheça. Por razões óbvias, impeço a entrada do gato da casa... e não apenas este.
Saio muito pouco do aposento, não foi sempre assim, mas um dia tudo mudou. No momento creio ter sido a decisão mais acertada. Minha presença incomoda as pessoas da casa, não admitem o maior apego pelo rato do que por elas. Minha existência sempre as incomodou, falam mal de mim, aos cochichos, sempre fizeram-no, só que agora me veem como um parasita. Rilho os dentes só de ouvir-lhes os sussurros, desde que me confinei rilho os dentes ao pensar neles : Sangue de meu sangue... prefiro os ratos !
O roedor invade o quarto por um dos buracos da porta, olha-me desconfiado, observo que engordou, aprecio suas maneiras sei que amizade é absolutamente impossível entre nós, por isso o adoro ! Ah, como adoro a ideia de vivermos assim pelo resto de nossas vidas; desconfiados, precavidos, cientes da impossibilidade de contarmos um com o outro ! Somos inimigos irreconciliáveis e isso é bom. A amizade é um fazer de conta que não somos adversários. Ele escondeu-se atrás da estante, por alguns momentos houve um silêncio absoluto, até que pequenos ruídos denunciaram-lhe a presença, nesse exato momento, ouço os malditos cochichos no quintal, percebo que me espreitam pelas frestas, encolho-me rilhando os dentes, tal a vontade de ataca-los a dentadas !
Permaneço deitado o dia inteiro, já não sei desde quando me confino, mas é indubitável o desejo de que este seja o meu fim, nada além dos limites destas paredes pode me interessar. Os melhores momentos ocorrem de noite, acendo a luz, leio, escrevo, nunca saio, salvo de madrugada, quando uso o banheiro do quintal e vou à cozinha pegar garrafa térmica com chocolate quente e pães com margarina.
As pessoas da casa sabem que as odeio. Não foi sempre assim, mas agora é. Não me perturbam, ao menos assim julgam, mas os cochichos são intoleráveis, agem como agulhas em brasa enfiadas nos ouvidos. Sei que para elas não passo de um doido varrido, o que é mentira, só não suporto a ideia de estar diante de outra pessoa... Como já disse, prefiro os ratos, meus verdadeiros irmãos : Tantos séculos de perseguição e eles sempre à espreita, sempre mínimos e, no entanto, a gana de prosseguir, existir, comer, beber, copular.
Ao arrastar a estante dei com uma ninhada. A rata não se aflige quando a observo amamentar, ontem à tarde até me sorriu : Levei um susto, pelo que saiba ratos não se valem dessa artimanha que camufla segundas intenções. Abandonou o esconderijo e achegou-se de mim, curiosa pela perturbação que me causou, recomendou-me calma, o que só fez com que me apavorasse mais...Tudo parecia avolumar-se e crescer, sentia a vertigem dos que caem em redemoinho ou em estado febril: Sons, odores, formas, tudo se tumultuava, havia uma compulsão por roer o pé da estante. Ela me ordenou contenção, a voz era firme, sentei-me ao seu lado para conversar, o diálogo, às vezes, era interrompido abruptamente para que corrêssemos aos guinchos pelo quarto. Contou-me que nasceu no esgoto; a mãe ladra muito admirada por roubar comida do casarão da avenida pavimentada, um dia caiu nas garras de um angorá. Ficou com o irmão, de início cuidaram-se um do outro, até a disputa pela semente de ameixa preta, na briga estripou-o e devorou-lhe as vísceras. Ao ficar só, jamais fez de conta que não era assim. Segredou-me que a vida era pautada pela precariedade, mas que os ratos divertiam-se sobretudo ao se depararem com ratoeiras; um bom naco de queijo vale o risco, riam a bandeiras despregadas quando um semelhante não se dava bem, riam e se aproveitavam, o queijo se disponibilizava... Certa feita viu uma rata prenhe presa pela barriga na ratoeira, o impacto a fez parir e projetar para longe os filhotes prematuros - "Oh, foi tão engraçado! Não nos ocupamos de mortos feito vocês, o comum é até que comamos um bocado deles... Nada, porém, é tão hilariante quanto a ratoeira. Já observei humanos fedidos exultantes apenas por matarem um dos nossos, deveriam olhar o esgoto...Para nós a unidade é ridícula, pois sabemos que único é sinônimo de fracasso, o que importa é o todo, que é, em suma, o resultado. Gatos também nos divertem , mas é diferente , uma coisa é ser atacado por uma geringonça e outra, por uma fera ah ah ah gatos pensam ,como nós; todavia, bastam apenas alguns de nós para saciá-lo, o que nos leva ao riso e indiferença quando sãos e salvos, pois na verdade ele nos presta um favor. Instalei-me nesta casa apesar do gato, sei que se alimenta de ração e que, portanto, a caça jamais será prioritária... não atino com a função dele, o que não me impede de tomar minhas precauções. Ah ! Tempos atrás estive no cio, não me lembro do pai de meus filhos - Oh ! Veja aquele ! (Apontou um filhote franzino com a orelha decepada pela mordida do irmão; ao vê-lo sangrar, a mãe atirou-se sobre ele e o dilacerou)".
Lá com meus botões me desapontei ante essa narrativa tosca, então, vali-me do mesmo recurso ao narrar-lhe minha vida, disse-lhe que fui filantropo, indagou-me o significado do termo, não soube dizer-lhe antes de consultar o dicionário, fato que me levou a uma retificação, não tive amor à humanidade, mas a amigos e parentes. Tive de explicar-lhe conceitos como família, amor, amizade e todas essas palavras soaram-me vazias e despropositadas, ainda mais quando ela desatou a rir ao entender que considero generosidade cuidar dos próprios filhotes, no fundo julgou-me um idiota e não prestou mais atenção ao que lhe dizia.
Discutimos quase às vias de fato. Não havia como convencê-la de que homens são piores do que gatos. Quando insistia em me desdizer, disse-lhe que quem adestrava gatos. Calou-se, os olhos se avermelharam, deu-me um guincho de raiva e atirou-se sobre um dos filhotes que mordera-lhe a teta, estraçalhou-o.
Já roí toda a parte frontal da estante. Agora é "ela" quem pega os pães na cozinha... de uns tempos para cá, tremo ao vê-la, atemoriza-me ao ponto de me ver compelido a me ocultar atrás da estante ou debaixo da cama, sinto atração por locais escuros.
Ontem à noite estive no esgoto... senti um cheiro intenso, tão apelativo que me pôs fora de mim, tive uma ereção insuportável, corri pelo muro que galguei na casa e deparei-me com uma ratazana amarelada, que fugiu ao me ver. Logo adiante alcancei-a, lutamos a dentadas, até que a cobri, tive mais de cinquenta orgasmos, retornei exausto: Post coitum animal triste ...
As pessoas da casa a têm por amiga. Às vezes, quando o gato se afasta, espreito-a sentada no sofá calçando meias de nylon pretas para ir ao trabalho; ri, conversa desenvolta, troca anedotas e flertes com os homens... não sei se é isso ou a reforma recente da casa, que deixou esse cheiro repugnante de tinta, que me desconcerta. A desorientação me conduz a guinchos dos mais desesperados. Contudo, nos dias em que ela retorna os cheiros se transformam em visões, e das coloridas e cores me perturbam, dão-me enxaquecas. Nessas ocasiões copulamos. No último encontro entendemo-nos pelo olhar, saí do quarto ainda de dia e apunhalei todos da casa e os roí aos guinchos e risos, em minha cabeça um Maelstron e ... ao percebê-la olhando-me com aqueles olhos avermelhados, decidi trancafiá-la no quarto, emparedá-la. Rapidamente vedei todas as conhecidas frestas, levantei outra parede cimentada. Os guinchos se arrefeceram com o tempo até o silêncio absoluto. Voltei a trabalhar.