UM BRASILEIRO NA MULTIDÃO.

UM BRASILEIRO NA MULTIDÃO
Autor – Milton Jorge da Silva - 20.02.1999
Ananias, um brasileiro, vivia na simplicidade da vida no campo, mas sempre a sonhar em conhecer a cidade grande. Numa tarde, saiu para pescar e como a maré não estava para peixe acabou por adormecer.De repente, como que se num sonho, encontra – se numa cidade grande, diferente, estilo moderno, grandes avenidas e muitos prédios semelhantes, ou assemelhados.

Um grande alarido chama-lhes a atenção, e numa esquina uma multidão aos brados, com faixas, cartazes, e semblante de pessoas furiosas. A princípio apressa o passo para não se envolver, mas, de relance consegue ler algumas faixas e cartazes, que pedem melhorias salariais.

A massa humana aproxima-se de um prédio de formato esquisito, mais parece uma concha, daquelas de servir feijão, só que sem o cabo, uma virada para cima e outra para baixo, deve ser a tal modernidade arquitetônica que se fala no rádio. Ananias ouve gritos, risos e vaias e a curiosidade o força a acompanhar a multidão.

Percorre um corredor enorme, luxuoso, até parece um palácio, paredes limpas, brilhando, o material parece ser mármore. O barulho vai aumentando até que alcança um enorme salão, completamente lotado de pessoas estranhas, todas vestidas de palhaços com nariz vermelho, só que, todos de cara amarrada, sem um único sorriso. Pensa, que raios de circo é esse?...
– Tem palhaço demais e riso de menos.

Lá ao centro do salão, senhores bem vestidos, com pinta de galã de novela das oito, discursam, gesticulam, e ao que parece decidem. Restava entender sobre o que estavam discutindo. Aproxima-se um pouco mais e ouve, falam de um tal salário mínimo, que segundo alguns oradores é magro, raquítico, e sofre de mal incurável, uma tal demagogia inflacionária.

Alguns daqueles senhores, pretendem que o tal salário mínimo tome alguns fortificantes para engordar e dobrar o peso: Seu poder de compra segundo eles, é de apenas 63 (sessenta e três) quilos, e deve chegar a no mínimo a 135 (cento e trinta e cinco) quilos. Discurso vai, discurso vem, bate, rebate e por fim decidem:

Que morra magro esse tal salário mínimo, afinal, ninguém garante que faze-lo engordar resolve o problema, vez que, o mesmo pode por desleixo voltar a emagrecer. E afinal, a magreza é a moda do momento, sem contar que ele padece de febre de aumento de preços. Ananias ouve vaias, parece que a decisão não agradou a platéia de palhaços, que continuam carrancudos e sem esboçar qualquer sorriso.

Ananias presta atenção e percebe que num canto do salão, há motivação, o barulho parece ser de uma minoria, mas, a algazarra é de alegria. Aperta os olhos para ver melhor e consegue decifrar um grupo de lobos uivando de felicidade.
Ananias puxa pela memória e pensa: - Deve ser isso o tal do loby que dizem exercer influência forte sobre os atores. Uma voz forte ao alto falante o traz de volta a realidade, quando anuncia a entrada em pauta de um novo projeto, desta feita dando aumento a um tal magistrado ou coisa parecida. A platéia dos lobos se agita, aplaude de forma entusiástica, misturando gritos, assovio, vaias.

Ananias liga seu sistema de alerta, não quer perder nenhum detalhe das discussões, mas, que decepção, nem discussão há, o projeto é aprovado na íntegra, para a alegria dos lobos. Instintamente, volta-se para a platéia de palhaços, e percebe a ausência do riso e a presença do choro, procura aproximar-se de um dos palhaços que parece liderar a turma, e pergunta o porquê do choro, e ele diz:

- Você já viu tamanha irresponsabilidade e descaso? Negam míseros cruzados para a sobrevivência de milhões de trabalhadores, e dão uma fortuna para os altos salários.

Sem sequer retrucar, Ananias ouve o cerimonial anunciar palavra livre para quem quiser, sem pensar duas vezes, corre para o microfone pensando, como é bom ter democracia. Se aproxima, dirige-se á mesa e questiona os atores:

- Senhores atores, por que teimam em fixar o salário mínimo, sem se preocupar com o salário máximo?...
- Se aumentar o salário mínimo, como foi dito, gera inflação e desordem econômica, nivelar o salário máximo e adequá-lo ao salário mínimo, deve fazer o efeito contrário.
- Que o salário mínimo não seja tão mínimo, e nem o salário máximo seja tão máximo.

Fica no aguardo da resposta da mesa, um cochicha no ouvido do outro, como que se de repente um mal estar rondasse todos os atores. Por fim a decisão, voltem na próxima seção que o Ministro responsável pela pasta econômica vai estudar o caso.

Ouve gritos, vira-se e observa que os palhaços voltaram a sorrir, retomaram a esperança, enquanto o cerimonial anuncia o fim da tribuna livre, e a entrada em pauta de um novo projeto, desta feita, aumento salarial para deputados e senadores. Ouve um barulho ensurdecedor e desperta. Também, como dormir com um barulho desses, levanta-se, liga e TV, está passando o Jornal da Noite, o apresentador anuncia com ênfase:

Em algum recanto do Brasil, acontece coisas boas:

- Prefeito doa seu salário á população carente;
- Vereadores reúnem-se e resolvem baixar seus próprios salários, adequando-os á realidade da condição de vida do povo.

Desliga a TV, e tenta dormir, na esperança de se encontrar com aqueles tristes palhaços, para lhes dar a boa notícia, e dizer, não percam a esperança, vamos lutar, ainda existe uma luz no final do túnel, basta apertar o botão e acende-la. Mas, a insônia tomou conta de Ananias, o cansaço o faz adormecer, só que, o sonho não veio.
Milton Jorge da Silva Escritor
Enviado por Milton Jorge da Silva Escritor em 17/10/2018
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