Zé das Mangas e a certidão de óbito

O doutorzinho era desalfabetizado de incongruências e media tudo pela lógica de sua lógica. Sabia até bem de artigos, parágrafos e alíneas, mas desconhecia, por quase inteiro, o que não cabe na caixinha da razão. São aqueles restos fora dos trilhos, como a fronteira entre a vida e a morte: quando uma começa e a outra acaba e quanto pode avançar o tempo de uma sobre o tempo da outra? Perguntas, até então, sem sentido ao doutorzinho. Foi por isso que, sem saber o que fazer, gritou:

- Viceeentaaa.

Vicenta, uma distinta e corpulenta senhorita de 55 anos, era secretária do cartório lá daquele finzinho do finzinho do finzinho de mundo. Necessária com todas as letras, pingo e acento, pois o doutorzinho, que pulou a janela, tinha só ela pra contar: sabia ler e escrever ra-samente, mas sabia, e, mais importante, era nativa, com entendimento de berço dos costumes e ideias do vilarejo.

Pular a janela das linhas acima é um jeito de dizer dos arranjos para que o doutorzinho, um jovem bacharel em direito, pudesse entrar no serviço público. Com pauzinhos mexidos, o doutorzinho se concursou em concurso só seu. Ficaria no vilarejo e, depois de um tempo, seria transferido pra cidade grande. Tudo combinado com os influentes do círculo de seu pai, um importante juiz.

- Que é, doutor? - perguntou Vicenta, não gostando muito de ter sido incomodada.

O doutorzinho apontou o homem-cadáver em sua frente e cochichou alguma coisa no ouvido de Vicenta. Ela olhou nos olhos fundos do defunto, balançou a cabeça em absurda afirmativa e respondeu com convicção:

- Sim, doutor, é o próprio. É o seu Zé das Mangas.

- Vicenta, para de brincadeira. O tal Zé das Mangas morreu.

- Se o senhor é tão sabido, por que me chamou então?

- É que esse homem tá dizendo que é o Zé das Mangas.

- E não é? Foi o que eu disse. Olha aí, doutor, é o Zé das Mangas. Tá cego? É ele, sem tirar nem pôr. Zé das Mangas só tem um. E é esse aí. O senhor já viu o Zé das Mangas? Não viu? Sei que viu. Ele já veio aqui trazer umas sacolas com mangas. Lembra não?

Fez que sim, lembrava das mangas e do Zé que veio com elas. Mas continuou em refle-xiva incompreensão.

O defunto apenas olhava de um lado pro outro. Queria falar, mas não lhe abriam espa-ço. Mesmo sendo o tempo uma coisa pra quem vive, aquele morto tinha pressa.

Vicenta notou a impaciência do Zé das Mangas e observou ao doutorzinho:

- Doutor, o Zé das Mangas parece que quer falar.

O doutor, jovem demais pras coisas da vida e ainda mais pras coisas da morte, mostra-va-se muitíssimo confuso. E Vicenta, de realidade prática, não entendia como um doutor, cheio de leituras de faculdade e todo fino de rico, não via o que estava bem embaixo do seu nariz.

- Não pode ser, Vicenta. Percebe o absurdo? O tal Zé das Mangas foi achado morto ontem lá no sítio dele.

- E eu não sei? Todo mundo sabe. A gente só não sabe do velório, porque não tem nin-guém pra fazer o velório dele.

Com vontade de encurtar aquele disse-que-não-me-disse, Vicenta colocou as mãos na cintura e perguntou, por fim:

- E aí, doutor, vamos resolver logo a situação do Zé das Mangas? Vamos ver o que ele quer?

- Ele não pode querer nada, Vicenta. Está morto. Não está?

- Haja paciência! De novo isso? Sim, tá morto. Nisso já concordamos. Ora, ele tá mor-to, mas táaqui na nossa frente. E quer alguma coisa. E a gente ainda não viu o que ele quer.

O doutorzinho continuava confuso. Fez a última tentativa:

- Vicenta, Vicenta, Vicenta...

- É o meu nome.

- Sim, é o seu nome - coçou a cabeça. Sentou-se e sentiu mais intenso o odor catin-guento do Zé das Mangas. Continuou:

- Vicenta, o tal Zé das Mangas morreu. Pronto e ponto. E este homem que está aqui sentado na nossa frente veio andando e disse "bom dia". Mortos não andam, não se sentam, não dizem bom dia.

- Ué, doutor, fala isso pro Zé das Mangas, então. Ele tá mortinho da silva aqui na nossa frente e fez isso tudo que o senhor falou.

- Mas Vicenta... Esse homem não pode ser o Zé das Mangas e nem pode estar morto. Você não entende?

- É o Zé das Mangas sim. Oh, minha paciência! É o Zé das Mangas. Garanto pro se-nhor. E tá morto como o senhor vê. Olha pra ele, doutor. Diz pra mim se este homem não tá morto.

O Zé das Mangas, já com algumas carnes caídas e fedor fúnebre, tinha tudo de morto. E não era como os tais zumbis não, invencionice de terror.

- Vicenta, você sabe o que é morrer? Sabe o que é isso? Não sabe? - o doutorzinho per-guntou.

Obviamente, Vicenta sabia bem o que é morrer. Por isso mesmo não tinha dúvidas que ali, encabulado e ansioso, estava o Zé das Mangas, mortinho, mortinho.

O doutor silenciou para tentar encontrar palavras lógicas e explicar o ponto final da morte.

- Vicenta, quando a gente morre, acaba. O tempo para de correr.

- Hum, sei... - a mulher entortou a boca em deboche. E, já não se aguentando de impa-ciência, balançava as nervosas pernas. Olhou com pena o Zé das Mangas. Crueldade demais deixar um pobre cadáver, caindo de podre, ali esperando.

- Doutor, vamos resolver logo isso - bateu o martelo. Virando-se ao defunto, pergun-tou:

- Pois então, seu Zé das Mangas, o que o senhor deseja?

Vendo que a disputa estava perdida, o doutor repetiu a pergunta para disfarçar autori-dade:

- Diga, seu Zé das Mangas, o que o senhor quer?

- Discurpi atrapaiá a conversa do cês, que tá tão boa, mas dotô e dona Vicenta...

- Correção... - interrompeu, irritada, Vicenta - dona não. Nunca me casei.

- Descurpi, dona Vicenta, digo, Vicenta. Oia, ocês deve ditê notado que já to começa-no a cheirá mar. Preciso arresorvê isso logo pra discansá em paz. O sinhô, dotô, com tanto es-tudo, deve de sabé que quem morre merece descanso eterno. Pois então, eu só quero fazê mi-nha acertadão dóbito e descansá na eternidade.

- Certidão de óbito - o doutorzinho consertou o dizer.

- Ah, doutor, precisa corrigir não. O senhor entendeu - intrometeu-se Vicenta.

- Não sei, não sei... - o doutorzinho pensou alto.

- Agora essa? Não sabe o quê? É só tomar notas de alguma coisa aí do Zé das Mangas. E pronto.

- Vicenta, é óbvio que o procedimento eu sei. Mas teria validade jurídica um documen-to solicitado por quem já morreu?

- Vai pensar nessa besteira jurídica agora, doutor? A gente já não aguenta esse fedor. Nem o próprio Zé das Mangas tá aguentando. Vamos logo com isso.

O Zé das Mangas ergueu um dedo. Vicenta fez pausa e disse:

- O homem quer falar. Diga, seu Zé das Mangas.

- É que não dá prá demorá muito não, pruque o covero fecha o sumitério.

- Ah, isso tudo é um absurdo! - desabafou o doutorzinho pra si mesmo.

- Absurdo, doutor, é o pobre ter dificuldade de conseguir um simples papel mesmo de-pois de morto. Vamos, doutor, acabe logo com essa novela! – ordenou Vicenta.

- Tá bem, tá bem – concordou o doutorzinho, que não sabia mais o que pensar. Procu-rava algum pensamento, mas todas suas ideias já tinham fugido, sentindo-se ofendidas com os disparates.

O próprio doutorzinho se posicionou em frente ao computador sob os protestos de Vi-centa. Ela sempre insistia em fazer as papeladas, mas não era tão letrada assim para essa tarefa. O doutorzinho fez um abano de mão e Vicenta saiu empinando o nariz. Reclamou com feição-enojada:

- Já tá se achando, né, doutor?

O doutorzinho fez que não ouviu e iniciou o procedimento:

- Seu Zé das Mangas, vamos fazer do jeito mais simples possível. Carimbo, assino e o senhor já poderá ir embora.

- Tá bem, dotô. Agradeço muito sua boa vontade.

- O senhor tem aí algum documento?

- Tenho não, dotô. Nem assiná meu nome eu sei.

Suspirou e prosseguiu:

- Ok, ok. Vamos dar um jeito. Qual o nome completo do senhor?

- Ué, Zé das Manga. Oceis tão repetino meu nome faz hora e ainda não sabe não?

- Zé das Mangas é o seu apelido. Mas qual é o nome de verdade do senhor?

- É como todo mundo me chama, dotô. É que lá no sítio tem muito pé de manga, de toda qualidade, bem docinha. Todo mundo pode pegá... Sempre teve manga lá. Aí ficou "Zé das Manga".

- Sim, sei disso. Mas qual é o nome verdadeiro do senhor?

- Ué, como tô dizeno, é Zé das Manga.

- O senhor deve se chamar José. E deve ter algum sobrenome...

- Doutor – intrometeu-se, de novo, a impaciente Vicenta – o homem tá dizendo: ele se chama “Zé das Mangas”. Oh, dificuldade! Adiante, adiante...

- Tudo bem, tudo bem. Vamos seguir. Qual é a data do seu nascimento?

- Ih, dotô, nasci faz tempão. Fiquei muito tempo nesse mundo, dotô. Papai e mamãe, que Deus o tenha, quando chegaro aqui era só mato, quase tinha casa nenhuma. Nasci já faz muito tempo...

- Mas foi em que dia, mês e ano?

- Lembro não, dotô. Minha memória não é tão boa. Inda mais agora que já morri. Só sei que passei tempo bastante nessa terra. E tô aqui pegano um poco mais de tempo, que já nem tenho mais direito. Tô emprestano tempo do zotro.

- Tá bem, tá bem. Deixa pra lá... Profissão?

- Que é, dotô!? Procissão? O senhô qué dizê as vez que todo povo caminha levano o andadô de Nossa Senhora?

- É andor e não andador, seu Zé das Mangas.

- Corrige não, doutor, se não vai demorar... - advertiu Vicenta.

O doutorzinho retomou:

- Seu Zé das Mangas, eu não disse procissão. Disse profissão.

- Ah, doutor, vamos acelerar isso - nova intromissão de Vicenta. - Seu Zé das Mangas, o doutor quer saber no que o senhor trabalha.

- Já tô morto, né, Vicenta? Trabaio mais não.

- Sim, mas o que o senhor fazia quando tava vivo? - Vicenta perguntou de outro modo.

- Oia, di tudo um poco. Ará, prantá, cuiê, ordenhá, fazê cerca, vendênas venda, fazê chiqueiro, dá comida pros bicho... Di tudo...

- Então, o senhor era trabalhador rural - concluiu o doutorzinho, digitando rápido.

- Deve di sê...

- Qual seu endereço?

- Lá no sítio. Agora vai sê no sumitério.

- Cemitério – corrigiu o doutorzinho.

Vicenta o olhou de cara feia. Fazendo não ser com ele, o doutorzinho continuou:

- Mas a casa do senhor era onde?

- Pois então... Lá no sítio mesmo.

- Mas, seu Zé das Mangas, qual é o endereço de lá?

- Num sei dotô, pruque nunca sube lê. Mas pode colocá aí “Sítio do Zé das Manga” que todo mundo sabe onde fica.

- Tá bem, tá bem.

Enquanto digitava, o doutorzinho teve uma dúvida, que seria ridícula antes daquilo tudo. Por curiosidade, perguntou:

- O senhor conseguiu comprar o seu caixão?

- Não, dotô, tenho dinheiro pra isso não. Mais oia, quando senti que meu tempo de vi-da tava no finzinho, aí eu mesmo fiz meu caixão. Peguei umas madera e fiz lá mesmo no sítio. Já tá lá no sumitério. O covero levô. Não se apreocupe não, dotô.

Depois de mais algumas perguntas burocráticas do doutorzinho e uns “sei não, dotô” do Zé das Mangas, a certidão de óbito estava, enfim, digitada, impressa, assinada, carimbada, finalizada.

Vicenta bateu palmas de vitória e comemorou:

- Viva o Zé das Mangas!

Gritou, tampou o nariz e ordenou:

- Agora vai se enterrar que o senhor tá muito fedido. Tenha um bom descanso eterno. Ah, dá lembrança pra minha tia Laurinha.

O Zé das Mangas pegou o papel com orgulho. Estava muito feliz. Só não chorou de contentamento, porque já não havia como fazer lágrimas. Agradeceu com verdade e estendeu a mão ao doutorzinho, que dispensou o aperto. Levantou-se com cuidado para não lhe cair nenhum pedaço. Seguiu em direção à porta, mas foi interrompido pelo doutorzinho.

- Seu Zé das Mangas, preciso entender uma coisa dessa loucura toda: por que o senhor quer este papel se já não está mais vivo?

Zé das Mangas explicou o óbvio:

- Dotô, tenho documento nenhum. Esse aí é o primero. Como é que as pessoa vai tê certeza que inxistiu o Zé das Manga se não tem paper argum pra prová? Quando argúem falá de Zé das Manga, os mais novo pode pensá que é invencionice. Mas, não dotô, eu inxisti, tive meu tempo aqui nessa terra. Esse paper prova isso. Entendeu, dotô?

O doutorzinho não entendeu nada. Só sabia, até bem, de artigos, parágrafos e alíneas... Essas coisas poucas que tomam todo o espaço da tão apertada lógica.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 13/09/2018
Reeditado em 28/05/2023
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