Batalha Celestial
Ambos estavam cansados, resfolegando, medindo-se reciprocramente tentando “enxergar” o limite das forças do oponente à sua frente.
O horizonte estava negro! Suas espadas, minutos antes imaculadas em seus fios impecáveis e brilhos inigualáveis, apresentavam-se corrompidas por dentes que as tornavam feias e causavam um certo dissabor aos alados rivais que as empunhava, maior, que o próprio sentimento que deveriam ter pelos não rasos cortes – na maioria em seus membros superiores (lesões de defesa), logo abaixo das reforçadas empunhaduras trespassadas pelos mui lindos instrumentos corto-cortantes manejados de forma tão igualmente hábil pelos anjos em quase completo esgotamento. O plasma se lhes esvaía em demasia, não dando a nenhum deles a mínima oportunidade de se recomporem. Não fosse o orgulho, pediriam trégua.
Nos dias da terra, a luta já durava três turnos de 24 horas... ininterruptas! Se dava em uma das dimensões de um cômodo que, para o moribundo que se contorcia em estopores e estertores da morte tão perto e tão longe, era um quarto com uma cama simples de lençol suado e caído ao chão, encharcado de xixi na ponta caída sobre o urinol aos pés da cama, mas para os inimigos em peleja, era apenas mais um dos incontáveis vales de lágrimas de onde o anjo iluminado queria livrar aquela alma prestes a desencarnar enquanto o anjo negro queria fazer do mesmo, inquilino eterno em sua subserviência escravativa.
No colchão encardido, febril, um corpo se contorcia em gemidos sincronizados com cada golpe de espadas cada vez mais esparso pelo gradativo cansaço dos opositores angelicais. O olhar de ambos às vezes se perdia nas trevas do horizonte como a buscar por uma ajuda que, sabiam, não viria. Aquela luta era só deles, para o bem ou para o mal.
Soubesse o caco de homem a intensidade e ferocidade com que lhe disputavam a alma doente os seres invisíveis aos seus olhos, talvez lhe fossem renovadas as forças em virtude do orgulho que deveria sentir pelo valor que lhe davam aqueles seres interdimensionais, ao ponto de lutarem em clangores ensurdecedores de espadas retinentes, com tamanho afinco, por tão somente um restinho insignificante de ser, em completa fedentina de dejetos escorridos em suas finas e atrofiadas coxas, pelas frestas de suas fraldas geriátricas não trocadas.
Havia sido, no auge da sua saúde, um defensor ferrenho da palavra de Deus na terra. Semeador de Ensinamentos Bíblicos, propagava aos quatro ventos a quem quisesse ouvir – e a quem não quisesse também – com seus brados retumbantes de pulmões orgulhosos de estufar o peito, os poderes e os propósitos de Deus para o homem. Falava das promessas Divinas, das suas próprias vitórias diante das adversidades, da sua fé, da sua coragem, da Voz de Deus na sua boca. Falava da Salvação e da perdição da alma.
Moribundo como estava, não tinha forças para falar mais nada... Fedido como estava, não tinha ânimo nem mais para pensar ou se orgulhar de nada. Nos raros minutos de consciência, passou a duvidar de Deus... E estava ali, justamente nesse ponto... duvidar ou acreditar em Deus?
Quando duvidava, dava forças ao anjo negro. Quando a fé lhe voltava, reforçava o anjo de luz. Quando não cria nem descria, ambos perdiam as suas forças e ficavam resfolegantes e fracos... O ponto era: Até quando?
A alma se desgarrou do corpo como um verme que se desprende de uma ferida... Ninguém notou no momento exato em que se deu o fato! Mas o anjo de luz se imiscuiu de uma tal força resplandecente que só restou ao outro se afastar em vergonhosa carreira. Não sem antes, num relance, antes que o brilho intenso e renovado do seu oponente lhe cegar, perceber que a alma pela qual tanto se digladiara, não estava mais lá. Seu antagonista também não a vira partir, mas o sabia, aquela alma fora arrebatada. A luz cegante das suas asas corroborava essa certeza. Deus Estivera ali e Fizera lá mais uma das Suas Grandes Obras.