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Enquanto meu corpo passeia por entre as escuras e apertadas vielas da cidade, apinhadas de gente da mais duvidosa índole, minha mente divaga. Estou acordado há tanto tempo que não sei mais se as cores que bombardeiam meus olhos vêm dos neons das propagandas e dos hologramas brilhantes ou são simplesmente alucinação da minha cabeça. Eu deslizo em meio à multidão, como uma cobra cibernética, ao mesmo tempo sonolento e agitado por conta do efeito das balas de flux, e minhas pernas parecem guiar-se sozinhas, como se eu não estivesse mais no controle: era apenas um instrumento da minha vontade. Sentia frio e fome, além de estar com a cabeça latejando pela falta de sono, mas não podia desistir. Não agora. Não com o mistério tão perto de ser resolvido.

Depois de mais dez minutos andando (o que na minha mente chapada parecia uma eternidade) eu paro em frente à o que parecia ser um bar, ou uma boate caindo aos pedaços. Pelo que foi descrito no enigma, deve ser aqui. A fachada é velha, e me remete a fotografias de uma época distante, décadas, talvez séculos atrás. Sim, era igualzinho as fotos. Luzes neon brilhavam como fogo, mas não eram como as luzes dos outros estabelecimentos daquela parte da cidade, não mesmo; eram luzes de neon natural, não apenas projeções de led e hologramas vulgares. As figuras brilhantes eram razoavelmente simples: um foguete de um lado da porta e uma nave espacial e um planeta do outro, singelos e de fácil assimilação, quase infantis, e não combinavam nada com o estilo complexo e elaborado dos desenhos das outras fachadas da região. Quase duvidei que aquele seria o lugar certo. Mas então levantei a cabeça e vi, em luzes azuis e vermelhas, o nome do lugar, e tive absoluta certeza, tanta que meu coração palpitava vigorosamente dentro do peito, tamanha minha excitação. Entrei.

De repente, tudo se fez breu. E, mais importante, silêncio. O irritante burburinho das pessoas, as estrondosas propagandas das megacorporações, as vozes estridentes das prostitutas se oferecendo, as turbinas dos carros zunindo poucos metros acima da minha cabeça: nada mais se podia escutar. O lugar isolava tudo. Aquilo era tecnologia de ponta, ou...algo que ultrapassava os limites da tecnologia. Só de pensar tive arrepios. Se eu estivesse certo, eu estava prestes a ter a prova de que existe algo mais, algo além do que podemos tocar e estudar. Algo não-quantificável, que não podia ser medido, muito menos visto. A próxima iteração do desenvolvimento humano, a junção perfeita entre a capacidade do ser humano e a capacidade tecnológica.

Pelo menos era isso que eu pensava.

Me arrisquei a dar um passo à frente, e foi aí que tudo mudou. Eu apaguei completamente. Quando acordei, já não era mais “eu”. É difícil de explicar sem me aprofundar demoradamente em conceitos filosóficos e metafísicos (acredite, eu gostaria de fazer isso), mas eu simplesmente não me sentia mais como um. Eu não tinha identidade, nem personalidade. Era pura e simplesmente minha vontade. E ainda estava em um lugar completamente escuro, mas era um lugar diferente, e apesar de não poder enxergar nada, eu podia sentir. Principalmente porque não estava em pé – eu estava flutuando. Em um momento, todo o meu cansaço e sono foram embora, junto com o efeito do flux. Eu estava limpo e pleno. A escuridão era quente e até aconchegante. De repente, me senti sendo jogado de um lado pro outro, violentamente, sem qualquer chance de me defender, e então aconteceu. Um turbilhão vermelho, laranja e amarelo começou a surgir à minha volta, e eu, bem no centro, estava maravilhado demais pra sentir qualquer outra coisa senão estupefação; eu ri, ri como uma criança, apesar de não poder ouvir o som de minha voz. Foi então que percebi que não tinha corpo, mas não fazia diferença naquele momento. O turbilhão aumentava a velocidade e se expandia pela escuridão, até o infinito. Então, fui levado pra frente, como uma montanha russa dentro de uma pintura expressionista e abstrata, cada vez mais rápido, cada vez mais forte, como se estivesse dentro de um buraco de minhoca, sendo levado à algum lugar inóspito e deslumbrante, em uma velocidade maior que a da luz. E então, olhando o turbilhão mais atentamente, percebi que ele era feito de todas as conexões e todas as relações entre todos os seres da Terra, humanos ou não. Eu vi todos os laços, todos os caminhos, e comecei a chorar, porque compreendi a ligação intrínseca que rodeia e norteia à todos. Eu também compreendi meu propósito, e porque a força maior, a força advinda da conexão, me permitiu resolver o enigma e chegar até aqui. Foi para ajuda-los, para criar um novo mundo, onde ninguém mais tenha que sofrer. E eu sabia que não estaria sozinho. Então, o turbilhão parou.

Tudo ficou escuro novamente. A mesma escuridão aconchegante, mas dessa vez mais profunda. Nenhum movimento, nenhum som, nem cheiro, nem nada. Apenas o escuro. De repente, letras verdes se materializam na minha frente. Letras simples, quadradas, antigas. E pude ler, naquelas letras cor de musgo, a frase simples, que terminava com um ponto de interrogação piscante, e que mudou minha vida para sempre:

“Você deseja logar?”

Daniel Bento
Enviado por Daniel Bento em 10/06/2018
Código do texto: T6360163
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