Nem tudo que Corina viu viveu e aprendeu, veio das cercanias da fazenda Campo Grande, ou dos almanaques que lia. Tinha impressões de viagem do Rio de Janeiro à Bahia, fuxicando com a neta também o Norte de Minas, para recontar sua história.
Aprendeu muito com o marido. Ele trouxera do Nordeste uma bagagem de cultura regional, sabedoria popular, e um baú de lendas e fatos com o matiz das cores do Brasil.
A carimbamba, por exemplo, Corina achava que era invenção de Generoso Batista. Generoso contava que ninguém do sertão ou do mar, jamais viu a carimbamba. Só à noite se ouvia seu lamento triste, semelhante ao clangor da acauã, canglorando, canglorando, agourando morte na aldeia.
Dizem que a carimbamba que há três mil anos canta, tem cabeça de gente e asas que não voam. E é igual em malvadeza ao Cabeça de Cuia[1], que, ‘Sete Marias precisava tragar. Sete virgens comer pro encanto acabar...' Já estava escuro, quando Maryula ouviu a carimbamba cantar: “amanhã eu vou... amanhã eu vou...amanhã eu vou... amanhã eu vou.” Curiosa, a menina adentrou a mata, e ao pisar o junco, na beira do brejo, a vegetação se abriu e a lagoa encantada apareceu. Maryula não voltou para casa. E até hoje, corre o boato, que uma velha encurvada, grasna, em noites de lua cheia, na lagoa que não é mais encantada.
— A menina se transformou numa velhinha mesmo, vovó?
— A velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor. Nas lendas e histórias infantis, as personagens não crescem, não envelhecem e não morrem. Até saem dos livros de ficção, e vão morar no mundo real.
Personagens saem dos livros como as esculturas de protagonistas do cristianismo, que Corina retirava do oratório e levava para o presépio. As imagens iam adorar o Menino santo, em uma gruta improvisada no canto da sala.
Era tão real.
A vida, enfim, é a ficção de uma realidade que ainda não aconteceu.
MAS...
Por onde começar?
O Bruxo do Cosme Velho aconselha que comesse a peça pelo fim. Entre logo no ápice, atingindo a culminância logo nos primeiros momentos.
Ravenala discordou. Preferiu abrir a torneira e soltar água aos poucos, para que uma formiga não fosse arrastada pelo tsunami e a história terminasse ali. E optou por tecer as fantasias com fiapos da realidade; por isso, quase tudo que contava para Maria Emília, era verdade. Ou aconteceu, ou ia acontecer, porque a ficção é uma realidade que ainda não aconteceu. Enfim, o que hoje é ficção, amanhã pode ser realidade.
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A ficção é uma realidade que ainda não aconteceu
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Pingos de chuva retidos nas folhas escorregam brilhantes, refletindo luz, e caem na cabeça das meninas.
Na copa da mangueira, periquitos algazarravam em festivo alvoroço, louvando a Deus pela fartura de alimento. Dois frutos despencaram antes da maturação.
— Vamos entrar, Ravenala, lá vem chuva de manga.
Os frutos desceram em linha reta. Velozes. Tinham roupagem verde-chumbo. Caiu na cesta o primeiro chegado, o outro, caiu no chão, dentro da vala de escoamento das águas pluviais.
— Não presta. Jogue fora!
— Só porque é filhote de manga?
— Não! Porque é peco.
— A manga maior e mais madura, ficou presa na forquilha do tronco. Pegue, Chanana. Seu braço alcança!
— Pego não! Está coberta de mosquitos e de chien.
— Picam?
— Mosquito assenta nos olhos da gente. Caminha no branco do olho. E chien gruda nos cabelos.
— Então vamos entrar.
— Corra, olhe a chuva...
Da janela, Ravenala olhava os pássaros, nicando as mangas maduras. Elas caiam sobre o piso cimentado, varrido, lavado e escorrido por Chanana, que trazia nas mãos os calos de Corina.
— A tarefa escolar, Ravenala!
— Tô indo, vó.
Quando dizem “tô indo,” as crianças ainda ficam meia hora. Esses meninos! — Matutou Corina.
— Mãe, me ajuda na tarefa!
— Isso não sei. Pergunte a sua avó ou espere seu pai chegar do Banco.
Corina se preocupava com o estado mórbido da filha e nada lhe tirava da cabeça. Meu Deus, aqueles malditos livros de autoajuda que Dulcinete lê de manhã à noite, deixam-na dependente da própria sorte. Nada ela faz, nenhuma atitude toma seu consultar o livro da sorte.
— Dulcinete, o lanche!
— Já lanchei.
— Ravenala.
— Já vou, vó.
Comia às pressas, e outra vez voltava ao misterioso quatro e punha-se a olhar uma réstia de sol, que incidia sobre a imagem em bronze de Jesus Crucificado.
— Quem te machucou?
— Foram as pessoas que amo.
— As pessoas que amamos machucam a gente.
— Às vezes, sim!
— Está muito ferido!
— Sou Pastor Ferido. Toco flauta para minhas ovelhas.
— Vou passar mercúrio em seu dodói.
— Faça como disseste.
A menina olhava o Tocador de Flauta pregado na cruz. Machucado. Desprezado. Coberto de chagas. Resignado, não reclamava, não levantava a voz.
— Foste tu que tocaste flauta e uma rataiada atirou-se ao mar e se afogou?
— Aquele é outro tocador de flauta. Quando toquei flauta, quem se atirou ao mar foi uma vara de dois mil porcos.
Ravenala percebeu que ainda não era capaz de compreender tudo. Nem mesmo se rataiada é coletivo de rato, e preferiu mudar o rumo de suas indagações:
—O vovô mora nesta parede, mas não desce para conversar comigo.
— Teu avô mora no céu.
— Chanana disse que meu avô morava numa estrela.
— Ele é uma estrela. Olhe para o céu. Aquelas estrelas são as almas dos fiéis cristãos. A lua são as almas religiosas.
— Não consigo reconhecer uma estrela especial, entre milhões de seres luminosos. Qual delas é meu avô Generoso?
— Não faça distinção das coisas criadas, elas são obra de minhas mãos. Eu dei a cada uma o mesmo brilho, de modo que, quando olhares as estrelas, saberás que teu avô Generoso é uma delas, assim, amarás a todas, igualmente.
— Quero ser uma estrela!
— Ainda não é chegada tua hora. Ainda vais crescer e tornar-se adulta...
[1] O que me trouxe a tua página foi a lenda do Cabeça de Cuia: a mais importante do folclore piauiense. Fiquei agradavelmente satisfeito com o texto. Comentário de Antônio Carvalho Neto em 27/03/2018 15:40h.Recanto das Letras.