Marcim da Lia

O Marcim da Lia foi-se aos 42 anos, só nove a mais do que Cristo. Nasceu e cresceu no Largo da Cruz, ali pirtim de nós todos. Menos do Rohr, o Reinaldo, que veio da rua Nova com a das Flores para se juntar à nossa confraria que cobria, além do Largo do Marcim, três becos mais: Canudos, o do Virgilho - que os historiadores registram como o Beco da Porfirinha - e o nosso, entre os dois primeiros, que era o Sem-Saída, de terra batida, porém com tão aprazível espaço para a prática do esporte bretão.

De caderno dobrado enfiado no bolso traseiro da calça - Marcim era frequente nas segundas épocas - ele cantava as suas próprias jogadas, realizadas ou idealizadas. Flamenguista roxo, elevava à categoria de ídolos, ao lado de Dida e Paulo Henrique, gente como Paulo Choco, Gaspar e Parobé, que incorporava em seus lances cantarolados. Uma única jogada sua me cativou, e foi justamente em cima do mano Beu, que era um Bellini na defesa: deu-lhe um chapéu quase vertical e aparou emendando para o gol...

Nos rachas que sua turma de ginásio fazia, após a sessão de educação física, raramente deixava de fazer gols, contudo. Talvez por não ter o desequilibrante caderno dobrado no bolso da calça. Ter observado atentamente seu estilo e seu posicionamento - impedido sempre - não me ajudou em nada nas peladas de nossa classe, que era um ano à frente, e tinha defensores da categoria de um Tode, um Bécaud, um Édson Aguiar. O Beco-sem-Saída é que era minha praia...

Marcim fez-se notável entre seus pares, por pelo menos um par de razões: sua esperteza em tudo o que se metia, e o seu rádio. É, o rádio e a rádia que veio em consequência, pois ele iniciou um curso do famoso Instituto Universal Brasileiro, o IUB que anunciava milagres diversos cursos que oferecia por correspondência, e o mais charmoso e imediatamente produtivo deles era o de consertador de rádio que, de lambuja, dava ao estudante as peças para ir montando seu próprio aparelho de rádio de verdade...

No quesito esperteza, as peripécias de Marcim são incontáveis, mesmo as desconhecidas e as inimagináveis. Duma feita, num grupo alegre que seguia pra pescaria rio Pará, a meia légua da cidade, íamos falantes linha-férrea afora - era ainda o tempo do trem - quando alguém sugeriu botar umas pedras na junção dos trilhos para derrubar a máquina do Juju. Marcim pôs-se logo de mãos à obra quando, do nada, apareceram dois ou três truculentos inspetores de linha...Ao seu brado denunciador de ..."tão pondo pedra na linha...", Marcim, agachado, mão na massa, respondeu, de chofre, com mais confiança do que um Luiz IndIgnácio ao negar a posse do triplex: "...Quê isso, sô, cês num tá veno que a gente tá tentano é tirá...?"

Doutra feita, numa sessão do cinema da fábrica, Marcim em altos brados mandou um garrotão que se encontrava na fileira da frente a tirar os braços da cabeça...A resposta que recebeu, ordem obedecida, foi o vô pegá ocê lá fora. E o indigitado, da turma da rua das Flores, além de bem mais forte, não estava só. E foi o primeiro a desferir um chute nos fundilhos de Marcim, apenas terminada a sessão. Marcim reagiu com a presteza de um corisco indignado:

- Isso num vai ficá assim não!

Ao que veio a resposta em coro debochante:

- Vai não? Vai o quê, então?

Marcim, sem perder a pose redarguiu, ao que todo mundo riu:

- Vai duê!

Doída, porém, foi a partida prematura de Marcim, quando um aneurisma o levou pra atuar noutro campim...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 17/04/2018
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