Um Homem Magro


Era um homem magro, tão magro de quase não se enxergar. Os míopes tinham dificuldades maiores de notar a sua presença. Acontecia muitas vezes destas pessoas irem de encontro ao seu corpo, que os pedidos de desculpas foram, aos poucos, sendo substituídos por impropérios.
    Durante um tempo, a fim de evitar estes transtornos, ele evitou sair de casa ao máximo, todavia como não gostava da solidão, encontrou uma saída: passou a usar uma fita fosforescente no pescoço, para anunciar a sua passagem. Isto facilitou muito o seu cotidiano, mas além de magrelo, anoréxico, linha de anzol, minhoca e outros adjetivos, passaram a chamá-lo de homem-luz.
   No começo ele ficava aborrecido, mas depois passou a gostar e sentia-se feliz de assim ser identificado. Um ser que emana luz é um esplendor. A magreza proporcionava-lhe algumas vantagens: podia entrar e sair dos locais com facilidade; proteger-se do sol abrasador sob minúsculas sombras; esgueirar-se entre os interstícios; brincar de esconde-esconde com as crianças. Ficava aborrecido por não ser tratado com naturalidade. Viviam a perguntar-lhe porque era tão magro, se não se alimentava adequadamente, porque não procurava um tratamento... No início ele ficava irritado e respondia desaforadamente, mandando o curioso cuidar da sua vida, que não se preocupasse com ele, que a única pergunta razoável a que se propunha responder era se era feliz. Ia logo adiantando que era.
   Declarar-se feliz constrangia seus inquiridores, que desistiam de novas perguntas. Ele percebeu, então, que a felicidade era uma coisa rara e incômoda. Percebeu, também, que poderia deixar um legado para a humanidade: para ser feliz é preciso que cada um aceite a sua condição. Mas num átimo pensou que isto levaria a um viés conservador. Reformulou sua teoria propondo a aceitar o que não pode ser mudado e mudar o que é necessário à felicidade.
   Satisfeito com a solução começou a pôr em prática o seu projeto: levar amor onde houvesse ódio; alegria onde houvesse tristeza; cura onde houvesse doença; paz em vez de guerra. Nas primeiras ações percebeu que a tarefa era árdua, precisava criar agentes multiplicadores. Mas fazia tudo com muita leveza, sem ansiedade, pois sabia que boas sementes germinam e dão bons frutos. Atendia a todos com o coração cheio de amor, mas não tinha palavras só de consolo. Muitas vezes perdia a paciência com alguém que insistia em desconsiderar-se e pedia que só voltasse a conversar com ele, quando se corrigisse.
     Após longos exercícios, ele aprendeu a levitar. As crianças ficavam admiradas vendo-o subir aos ares, empoleirando-se nos galhos de árvores e descendo ao chão suavemente. Chegaram a dizer que ele fazia isto por conta da sua magreza, ajudado pela força do vento. Ele respondia pacientemente, dizendo que qualquer um podia alçar voo. Precisava apenas aprender a se concentrar. Através de muitos exercícios, ele conseguiu um dia voar cerca de dez minutos, fazendo mais de dez quilômetros a seiscentos e cinqüenta e três pés de altura. Para esta primeira experiência ele escolheu um local deserto, com receios de despertar sentimentos incognoscíveis nas pessoas. A sensação que experimentou durante o vôo foi a de não se ser prisioneiro de concupiscência, que se dissipou, quando voltou a pisar em terra firme. Quis alçar novo voo, mas não teve forças. Retornou em silêncio, observando pequenos pontos negros nas alturas: urubus voando serenamente em círculos. Teve curiosidade em saber como eles podiam voar tão alto a ponto de desaparecerem no infinito.
    Este homem leve levava consigo o desejo de encontrar alguém para compartilhar a descoberta de um novo modo de viver. Por respeito ou por temor, as pessoas já não ousavam agredi-lo com palavras e gestos, proporcionando-lhe uma vantagem: podia expor suas idéias e convencer alguns a segui-lo. No começo não conseguiu convencer ninguém. Ao conjeturar sobre estas dificuldades, concluiu que havia falhas de comunicação, que o projeto precisava ser mais bem elaborado. Começou, então a trabalhar com crianças e em pouco tempo, algumas davam pequenos voos desequilibrados, mas era um sinal de que trilhava o caminho certo. Com elas descobriu que seria capaz de voar muito alto quando se despojasse inteiramente de sentimentos mesquinhos. Decidiu parar de se exibir em vôos acrobáticos, mesmo para as crianças, pois o fazia por vaidade. Passou, então, ao nível delas. Precisava fazer se respeitar sem artifícios, levando uma vida normal com os seus semelhantes, sem, contudo, abrir mão do sonho de voar.
     Voltou à atividade de artesão, confeccionando pipas coloridas de modelos variados: arraia, papagaio, pandorga, quadrado, que vendia em feiras públicas, à margem das rodovias e em eventos culturais nas cidades do interior, em especial no circuito da Estrada Real. Gostava muito de ambientes tranquilos, em contato com a natureza, por isso ia muitas vezes a Bichinho visitar o amigo Berzé, para trocar ideias de artes. Só de ver os dois conversando sobre criatividade era uma alegria de encher o coração. Mas para alguns era uma conversa de malucos, não entendiam o que eles diziam. Às vezes o homem magro parecia ausente, via-se apenas uma faixa de luz circulando e Berzé rabiscando umas figuras estranhas num papel, entregando pra ele. Eles interagiam, como algum tempo depois ficou provado: os rabiscos do desenhista transformavam-se em maravilhosas pipas nas mãos do artesão.
    O homem magro, por mais que tentasse não era uma pessoa comum. Isto o incomodava um pouco, pois as pessoas o olhavam de um modo diferente e ele queria um olhar de igualdade. Certo dia em que nuvens pesadas ofuscavam o azul-celeste, pousou no frondoso pé de buriti do quintal de sua casa uma araraazul. Ao sair para vê-la, encheu-se de alegria e em seguida encheu-se de preocupação. Porque uma ave rara, em vias de extinção migrava para a cidade? Precisava protegê-la e não sabia como. Ficou em silêncio profundo com receio de assustá-la. Ela comia os cocos, tomando o cuidado de olhar de vez em quando para os lados, a fim de se proteger de algum predador. De repente, ela o viu observando e parou de comer e ficou a fitá-lo do alto do buritizeiro. Assim permaneceram durante alguns minutos, a ave e o homem não se moviam a ponto de ouvir o pulsar dos corações. Ele não querendo magoá-la e ela... queria o quê? Por fim ela entoou um canto sem tirar os olhos de sua direção e a bater as asas. E ele, na tentativa de estabelecer uma comunicação, pôs-se a grasnar de cócoras, dando pulos e batendo os braços, como se fossem asas. Quando voltou a si, encontrava-se perto das nuvens, acompanhado pela arara azul.



Extraído do meu livro Filhos da Terra - Edição 2009 - esgotada

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