Uma mulher gorda
Era uma mulher gorda, que de tão gorda não podia pegar o lotação por causa da roleta. Ela ficava envergonhada, pois sempre havia olhares e comentários maldosos. Quando vinha um ônibus grande, ela arriscava, pois podia entrar e sair pela porta da frente, porém quando via um micro-ônibus, ela virava o rosto, fingindo não vê-lo e seguia a pé. Alguns amigos diziam que era bom fazer caminhadas, pois perderia peso, além de economizar uma grana, afinal a tarifa está custando o olho da cara – completava outro.
Ela colocava a mão no rosto e chorava um choro do tamanho do seu corpo descomunal. Ela era mãe solteira e a filha era a razão da sua vida. A casa teve as portas adaptadas para que ela pudesse passar, porém, a cada ano, as paredes eram derrubadas para ampliar ainda mais as portas. Havia dificuldades de encontrar marcos e portas, pois o mercado impunha modelos pré-estabelecidos. O mesmo acontecia com outros móveis. A cama dela era enorme, feita com madeiras grossas e resistentes a fim de suportar o seu peso. Toda vez em que ia se deitar, ela olhava antes debaixo da cama, para se certificar que a cadela cooker não se encontrava dormindo ali. Receava quebrar a cama e esmagar o pobre animal. Puxava-a para cima e dormia abraçada com ela.
O homem que a emprenhara desapareceu assim que ela começou a engordar. “Se você tem vergonha de mim, suma e vá para a puta que o pariu”. Estas foram suas últimas palavras para o homem com o qual vivera quatorze anos, sete meses e onze dias, que não quis ficar no povoado nem mesmo em consideração pela filha. Depois ela caiu num pranto que durou três dias e três noites, sem dormir, sem comer, sem tomar banho e, no fim do terceiro dia, para seu maior desgosto, após pesar na balança do armazém de Seu Onório, descobriu que engordara nove quilos e duzentas e cinqüenta gramas. Ao descer da balança, disse olhando nos olhos de cada um e cada uma dos presentes no armazém:
- Caralho de vida, se meu destino é engordar, vamos ver aonde isso vai. Levarei minha tristeza blasfemando contra este destino infundado, que uma hora há de ter um fim, nem que seja com a minha morte. Quanto a vocês, que fiquem aí bebendo suas alegrias que também findarão, de um modo ou de outro. Venha meu talismã. Pegou a filha pela mão e foi ao supermercado fazer compras, antes, porém, foi ao shopping e na praça de alimentação fartou-se de tortas, quitutes e doces.
Os dias passavam e ela não parava de engordar. Já não sabia onde colocar seu corpo desproporcional. A filha caíra num silêncio enigmático e não a defendia mais das pilhérias irrefreáveis dos transeuntes, nem sobrava tempo de fazer-lhe companhia. Passava horas a fio brincando com as colegas. Onde está a sua mãe, perguntavam as colegas, contudo Rosita nada respondia e continuava brincando, alheia às perguntas logo logo esquecidas em jogos lúdicos.
Chegou um tempo em que Adelita não saia mais da cama. Apesar de fofoqueiros e maledicentes, os cidadãos de Noretty e região eram solidários. Um exército ficou de prontidão para atender às necessidades de Adelita, que eram muitas. Davam-lhe banhos e a perfumavam; recolhia tudo que ela expelia pelas vias naturais; alimentavam-na e até mesmo algumas carícias fugazes eram-lhe destinadas. Além da solidariedade, os moradores demonstraram capacidade de organização: havia revezamento com escala e horário para não deixar Adelita desamparada tanto nas noites tempestuosas, quando nos dias ensolarados.
Ao pôr do sol de janeiro, o mês mais abrasador do povoado, quando pernilongos ocupam as casas como se necessitassem de tetos mais do que sangue; quando a atmosfera exala um aroma insuportável, que empesteia o ambiente; com toda espécie de insetos: coleópteros, himenópteros, isópteros, ortópteros entre outros pestilentos obstruindo o tráfego aéreo e terrestre, um homem estranho chegou ao lugarejo perguntando onde morava Adelita. As mulheres de Norethy, carentes de homens, pois os que não morreram em guerras voltaram mutilados, ficaram alvoraçadas, abanando-se com folhas de taiobas, a fim de espantar o calor que se apossava de seus corpos como em climatério, queriam de todo jeito conhecer o cavaleiro de fina estampa. Era um homem alto, musculoso, de cabelos longos, olhar lânguido e pele bronzeada. Vestia uma jaqueta de couro desabotoada, exibindo peitos largos e que deixava à mostra uma tatuagem de tubarão, que a população concluiu tratar-se de um pescador, mais provavelmente um marinheiro, embora sua roupa fosse imprópria. Ele caminhava com passos decididos pela única rua do povoado, arrancando suspiros das mulheres e desprezo dos homens. Ele cumprimentava a todos, com um breve inclinar de cabeça para os homens e com um sorriso para as mulheres, que afinava seus lábios grossos, deixando à mostra um dente de ouro reverberando nos últimos raios de sol. Todas queriam conduzi-lo à casa de Adelita, todavia ele dispensou educadamente.
Ao se aproximar da casa, antes de entrar olhou atrás de si e viu toda a população feminina do povoado se acotovelando, com exceção das plantonistas que teriam de se retirar, para que ele pudesse conversar a sós com a mulher mais gorda que os moradores de Norethy viram em todas as vidas pretéritas, presentes e que não seria vista no futuro. O cavaleiro de fina estampa inclinou-se ligeiramente para a multidão feminina em sinal de licença para fechar a porta. Queria reviver os momentos de intimidade que passara com Adelita desde o dia em que fugira há mais de quatorze anos, por não suportar os orgasmos múltiplos que ele proporcionara a ela. Durante uma semana e meia os moradores de Norethy ouviram os gritos e sussurros de prazer que vinham de dentro da casa. Isto fez com que a moral dos mutilados de guerra se reerguesse e as mulheres encontrassem novamente o prazer de abraçar os seus homens. Desde então a felicidade se estampou nos rostos até então tristes dos cidadãos e cidadãs do povoado.
Rosita, a esta altura exibindo dois lindos botões, que o vestido não conseguia mais ocultar, pulava e gritava pela única rua, outrora silenciosa e triste, mas que agora explodia em cores nos muros cobertos de rosas, alamandas e buganvíleas, dizia a todos que finalmente teria um irmão para protegê-la contra os maníacos e pedófilos, pois desejava casar-se virgem.
Assim, depois de uma semana e meia, todos viram a casa de Adelita se encher de luz. Ao abrir as janelas e as portas Rosalvo e Adelita viram o céu do povoado iluminado pelo espetáculo pirotécnico que os moradores ofereciam em homenagem ao mais recente casal.
Rosalvo pegou com destreza sua doce Adelita e a carregou no colo, sob os aplausos da multidão. Então, todo o povoado percebeu a transformação da mulher. Adelita tinha os cabelos longos, soltos e um corpo de Vênus. Era a mulher mais bonita que os moradores de Norethy conheceram. Em seguida, silenciosamente e de mãos dadas o casal, acompanhado por Rosita, foi se afastando da cidade em direção ao cais, onde um enorme navio estava atracado.
A multidão permaneceu no cais acenando para o casal até o momento em que o navio era apenas um ponto luminoso no oceano.
Do livro, Crônicas do Cotidiano Popular, (Edição do autor – 2006 – 114p. de bolso). Primeira edição esgotada.
Imagem: Google
Era uma mulher gorda, que de tão gorda não podia pegar o lotação por causa da roleta. Ela ficava envergonhada, pois sempre havia olhares e comentários maldosos. Quando vinha um ônibus grande, ela arriscava, pois podia entrar e sair pela porta da frente, porém quando via um micro-ônibus, ela virava o rosto, fingindo não vê-lo e seguia a pé. Alguns amigos diziam que era bom fazer caminhadas, pois perderia peso, além de economizar uma grana, afinal a tarifa está custando o olho da cara – completava outro.
Ela colocava a mão no rosto e chorava um choro do tamanho do seu corpo descomunal. Ela era mãe solteira e a filha era a razão da sua vida. A casa teve as portas adaptadas para que ela pudesse passar, porém, a cada ano, as paredes eram derrubadas para ampliar ainda mais as portas. Havia dificuldades de encontrar marcos e portas, pois o mercado impunha modelos pré-estabelecidos. O mesmo acontecia com outros móveis. A cama dela era enorme, feita com madeiras grossas e resistentes a fim de suportar o seu peso. Toda vez em que ia se deitar, ela olhava antes debaixo da cama, para se certificar que a cadela cooker não se encontrava dormindo ali. Receava quebrar a cama e esmagar o pobre animal. Puxava-a para cima e dormia abraçada com ela.
O homem que a emprenhara desapareceu assim que ela começou a engordar. “Se você tem vergonha de mim, suma e vá para a puta que o pariu”. Estas foram suas últimas palavras para o homem com o qual vivera quatorze anos, sete meses e onze dias, que não quis ficar no povoado nem mesmo em consideração pela filha. Depois ela caiu num pranto que durou três dias e três noites, sem dormir, sem comer, sem tomar banho e, no fim do terceiro dia, para seu maior desgosto, após pesar na balança do armazém de Seu Onório, descobriu que engordara nove quilos e duzentas e cinqüenta gramas. Ao descer da balança, disse olhando nos olhos de cada um e cada uma dos presentes no armazém:
- Caralho de vida, se meu destino é engordar, vamos ver aonde isso vai. Levarei minha tristeza blasfemando contra este destino infundado, que uma hora há de ter um fim, nem que seja com a minha morte. Quanto a vocês, que fiquem aí bebendo suas alegrias que também findarão, de um modo ou de outro. Venha meu talismã. Pegou a filha pela mão e foi ao supermercado fazer compras, antes, porém, foi ao shopping e na praça de alimentação fartou-se de tortas, quitutes e doces.
Os dias passavam e ela não parava de engordar. Já não sabia onde colocar seu corpo desproporcional. A filha caíra num silêncio enigmático e não a defendia mais das pilhérias irrefreáveis dos transeuntes, nem sobrava tempo de fazer-lhe companhia. Passava horas a fio brincando com as colegas. Onde está a sua mãe, perguntavam as colegas, contudo Rosita nada respondia e continuava brincando, alheia às perguntas logo logo esquecidas em jogos lúdicos.
Chegou um tempo em que Adelita não saia mais da cama. Apesar de fofoqueiros e maledicentes, os cidadãos de Noretty e região eram solidários. Um exército ficou de prontidão para atender às necessidades de Adelita, que eram muitas. Davam-lhe banhos e a perfumavam; recolhia tudo que ela expelia pelas vias naturais; alimentavam-na e até mesmo algumas carícias fugazes eram-lhe destinadas. Além da solidariedade, os moradores demonstraram capacidade de organização: havia revezamento com escala e horário para não deixar Adelita desamparada tanto nas noites tempestuosas, quando nos dias ensolarados.
Ao pôr do sol de janeiro, o mês mais abrasador do povoado, quando pernilongos ocupam as casas como se necessitassem de tetos mais do que sangue; quando a atmosfera exala um aroma insuportável, que empesteia o ambiente; com toda espécie de insetos: coleópteros, himenópteros, isópteros, ortópteros entre outros pestilentos obstruindo o tráfego aéreo e terrestre, um homem estranho chegou ao lugarejo perguntando onde morava Adelita. As mulheres de Norethy, carentes de homens, pois os que não morreram em guerras voltaram mutilados, ficaram alvoraçadas, abanando-se com folhas de taiobas, a fim de espantar o calor que se apossava de seus corpos como em climatério, queriam de todo jeito conhecer o cavaleiro de fina estampa. Era um homem alto, musculoso, de cabelos longos, olhar lânguido e pele bronzeada. Vestia uma jaqueta de couro desabotoada, exibindo peitos largos e que deixava à mostra uma tatuagem de tubarão, que a população concluiu tratar-se de um pescador, mais provavelmente um marinheiro, embora sua roupa fosse imprópria. Ele caminhava com passos decididos pela única rua do povoado, arrancando suspiros das mulheres e desprezo dos homens. Ele cumprimentava a todos, com um breve inclinar de cabeça para os homens e com um sorriso para as mulheres, que afinava seus lábios grossos, deixando à mostra um dente de ouro reverberando nos últimos raios de sol. Todas queriam conduzi-lo à casa de Adelita, todavia ele dispensou educadamente.
Ao se aproximar da casa, antes de entrar olhou atrás de si e viu toda a população feminina do povoado se acotovelando, com exceção das plantonistas que teriam de se retirar, para que ele pudesse conversar a sós com a mulher mais gorda que os moradores de Norethy viram em todas as vidas pretéritas, presentes e que não seria vista no futuro. O cavaleiro de fina estampa inclinou-se ligeiramente para a multidão feminina em sinal de licença para fechar a porta. Queria reviver os momentos de intimidade que passara com Adelita desde o dia em que fugira há mais de quatorze anos, por não suportar os orgasmos múltiplos que ele proporcionara a ela. Durante uma semana e meia os moradores de Norethy ouviram os gritos e sussurros de prazer que vinham de dentro da casa. Isto fez com que a moral dos mutilados de guerra se reerguesse e as mulheres encontrassem novamente o prazer de abraçar os seus homens. Desde então a felicidade se estampou nos rostos até então tristes dos cidadãos e cidadãs do povoado.
Rosita, a esta altura exibindo dois lindos botões, que o vestido não conseguia mais ocultar, pulava e gritava pela única rua, outrora silenciosa e triste, mas que agora explodia em cores nos muros cobertos de rosas, alamandas e buganvíleas, dizia a todos que finalmente teria um irmão para protegê-la contra os maníacos e pedófilos, pois desejava casar-se virgem.
Assim, depois de uma semana e meia, todos viram a casa de Adelita se encher de luz. Ao abrir as janelas e as portas Rosalvo e Adelita viram o céu do povoado iluminado pelo espetáculo pirotécnico que os moradores ofereciam em homenagem ao mais recente casal.
Rosalvo pegou com destreza sua doce Adelita e a carregou no colo, sob os aplausos da multidão. Então, todo o povoado percebeu a transformação da mulher. Adelita tinha os cabelos longos, soltos e um corpo de Vênus. Era a mulher mais bonita que os moradores de Norethy conheceram. Em seguida, silenciosamente e de mãos dadas o casal, acompanhado por Rosita, foi se afastando da cidade em direção ao cais, onde um enorme navio estava atracado.
A multidão permaneceu no cais acenando para o casal até o momento em que o navio era apenas um ponto luminoso no oceano.
Do livro, Crônicas do Cotidiano Popular, (Edição do autor – 2006 – 114p. de bolso). Primeira edição esgotada.
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