Heróis

– Não me pega, sua tartaruga!

Rodrigo correu, mas sabia que era em vão. Matheus tinha a dianteira. Mesmo assim tentou. Correram, distantes uns cinco metros um do outro, até pararem, ofegantes, quase ao mesmo tempo.

– Não... me... pegou! – Matheus gritou, sarcástico.

Rodrigo usou suas últimas forças, correu até ele e o empurrou. Matheus caiu estatelado na grama e o encarou, furioso.

– Não só peguei como nocauteei, perdedor...

Um golpe rápido, uma rasteira rasteira. Rodrigo foi ao chão. Estirados, encararam-se por alguns instantes e em seguida caíram na gargalhada. Matheus levantou primeiro e estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar; sabendo que o outro o soltaria a meio caminho de se levantar, fazendo com que caísse, Rodrigo o puxou com força. Matheus foi rápido o suficiente para cair em cima dele, deixando-o sem ar.

Várias risadas. Olharam em volta. Não haviam se dado conta de que vários colegas os assistiam. Olharam-se, sorriram e disseram, um ao outro, sem palavras: “somos heróis!”

Uniram as mãos e levantaram ao alto. A plateia foi ao delírio.

Plateia. Rodrigo abriu os olhos e viu um desconhecido piso de lajotas brancas. Não sabia e não queria saber onde estava.

– E assim, o cachorrinho chamado Bob Marley descobriu o que era o amor...

Matheus, de quatro, no chão, acasalou com um cãozinho de pelúcia. Os amigos riram.

– Mas não sabia ele – disse Rodrigo – que a sedutora poodle tinha chato.

Matheus rolou pelo chão, coçando a virilha com os pés. Mais gargalhadas.

– Então, um belo dia, depois de ter se livrado dos chatos, nosso vira lata recebeu a visita de um cãolicial em sua cãosinha. “Se você não pagar doze bifes de pensão para a Lessie você vai para a cãodeia!” E o vagabundo do Bob Marley precisou trabalhar.

– Au au, obrigadau!

– Bob trabalhou na cãochonete do cãolégio onde seus filhotes estavam estudando. Um belo dia, sua amada foi buscar os filhotes com o namo... –

Uma mão em sua cabeça interrompeu o filme mental. Rodrigo abriu os olhos e ergueu a cabeça involuntariamente. Seu tio Alessandro segurou seu queixo e o encarou com aqueles olhos cheios de bondade.

– Vamos para casa barbudão...

Rodrigo levantou de supetão, se desvencilhou do tio e correu para fora daquele maldito lugar. Olhou para trás algumas vezes mas não viu o homem o seguindo; melhor assim. Continuou andando a esmo, sem destino, até por fim cansar. Encostou em um muro de pedra e desatou a chorar.

Lágrimas abundantes escorreram de seus olhos, encharcando a barba farta. Silêncio. Som algum saiu de sua boca, expressão alguma se delineou em sua face. Era sua alma que conjurava aquelas lágrimas, aquela silenciosa tempestade de agonia vinda dos confins do seu coração.

Na frente daquele terreno baldio não havia ninguém para se importar com ele. Melhor assim. Queria ficar sozinho, como nunca ficou (e nunca quis ficar) em toda sua vida. Mal enxergava um palmo diante do nariz e não era por conta das lágrimas; flashes rápidos e dolorosos passavam diante de seus olhos como se alguém estivesse projetando vídeos na tela de sua mente.

Sabia que não poderia ficar ali. Em breve alguém viria atrás dele. Testou um passo à frente. O joelho rangeu, como se o alertasse de que não seria capaz de mover seu corpo. O pé tocou novamente no chão. No exato lugar onde estava segundos antes.

Rodrigo deixou o corpo vencer. A cabeça pesada se abaixou, fazendo com que o queixo tocasse o peito, a barba encharcada pressionada contra a blusa. Sentia o vapor escapando dos pelos faciais: as lágrimas mornas evaporando no ar frio daquela maldita noite gelada. Mas não sentia frio algum, nem calor, apenas letargia, vácuo, um buraco negro se expandindo dentro do peito, comprimindo seus pulmões, fazendo com que o silencioso choro aos poucos fosse escapando de seus lábios na forma de soluços.

– Mas me diga, professora – Matheus interrompeu a explicação. Rodrigo fez sinal negativo com a cabeça, aguardando as gargalhadas dos colegas e a cara feia da professora. – Por que todas essas guerras se Jesus nos ensinou a amarmos uns aos outros?

A professora abriu a boca. Ficou com ela aberta durante alguns segundos. E fechou-a novamente. Rodrigo testou um rápido olhar para Matheus. O olhar que recebeu em troca confirmou sua suspeita. Sabia o que ele estava fazendo.

– Eu entendi que o que Hitler queria fazer era construir um mundo que era ideal para ele – e ele, Matheus, conseguiu. A professora agora o ouvia com uma expressão mais neutra, quase curiosa. – Expurgar o mundo do que ele não achava digno é a única coisa que não concordo. Ele podia ter simplesmente conversado com o resto do mundo pra tentarem entender as ideias dele. O cara era foda pelo que você falou, era um líder. Se ele quisesse, ele podia ter os Estados Unidos nas mãos dele!

– E... – a professora pensou por um instante – como ele poderia ter os Estados Unidos nas mãos dele?

Matheus olhou para ele na mesma hora.

– Sendo um herói – Rodrigo prontamente disse. – Aquela pessoa que arranca risadas, que tira a seriedade das coisas, que transforma tudo em piada.

– Entendi, vocês acham que ele devia ser como vocês – disse a professora com um misto de riso e desgosto. – Mas ao invés de interromper a aula para falar algo útil, vocês resolvem fazer piada para aparecer... Hitler sabia usar a inteligência um pouco melhor do que vocês...

A turma foi ao delírio.

– Que absurdo! – Matheus disse, indignado. Rodrigo sentia-se como se estivesse flutuando. – De onde você tirou essa ideia de que gostamos de aparecer?

Vencida, a professora riu com a turma.

– E se a senhora, professora, acha que não usamos nossa inteligência como Hitler – disse Rodrigo, com um tom de quem explica que um mais um são dois – saiba que no nosso mundo ideal, matemática e física deveriam ser expurgadas. Mas nós não somos como Hitler; convivemos com o desgosto de nada podermos fazer para tirar do mundo o que queremos.

A professora virou as costas e se sentou. A aula, afinal, estava quase no fim. E a turma começou a discutir qual seria o mundo ideal de cada um.

Rodrigo conhecia Matheus mais do que conhecia a si. Os pensamentos, vontades e intenções dele eram claros como água cristalina. Na verdade, Rodrigo sentia que o outro era praticamente uma extensão de si, um complemento.

Uma mão tocou seu ombro. Seu primeiro impulso foi gritar para que o deixassem em paz, mas a energia do toque percorreu todo o seu corpo em ondas esgotantes de reconforto. O corpo, já pesado, alertou a falta de forças e ele só não despencou no chão porque outra mão envolveu sua cintura. Não sabia quem era o dono daquelas mãos; estava cego e surdo. A pessoa, delicadamente, o guiou para outro lugar. Andou molemente até chegar a uma cadeira, onde sentou-se e, novamente, acomodou a cabeça entre os joelhos.

Não era para ser assim, não era justo. Não era capaz de viver sem ele. A vida sem ele parecia incompleta. Ele estava incompleto. Metade de seu brilho havia se apagado.

Mas, quem sabe, fosse apenas uma piada. Heróis sempre foram bons em se esconder, em se disfarçar. Levantou de onde estava, desviou de algumas pessoas e entrou na capela.

Estavam no topo de uma enorme descida. A rua, recém-asfaltada, havia sido nomeada pelos garotos da vizinhança como beco do monte. Rodrigo e Matheus estavam com mais quatro amigos, todos de bicicleta, subindo e descendo várias vezes.

– Olha lá – Bruno, o mais medroso da turma, disse. – Se quebrou.

E realmente, Thiago, o grandalhão, havia caído. Depois de subirem e descerem várias vezes, haviam decidido tornar a aventura um pouco mais radical. Um por um foram descendo e, no meio do caminho, a toda velocidade, apertavam o freio traseiro, fazendo com que a roda deslizasse no chão, deixando um rastro no asfalto. Quando chegavam no fim da descida, voltavam. E era a vez de outro. Quem fizesse o risco mais comprido no asfalto venceria.

Thiago voltou, o único até então a ter caído. Levantou a calça e mostrou a eles um raspão de uns dez centímetros na perna e outro menor no braço.

– Que dor – jogou a bicicleta de qualquer jeito no chão e sentou no asfalto, assoprando os machucados. – O meu é o maior de todos – deu um sorrisinho de canto de lábio, desafiador.

– Minha vez – Rodrigo montou na bicicleta.

– Cuidado – Matheus o olhou com a testa enrugada. Rodrigo nunca via a testa dele enrugada. Tudo o que via era desdém, sarro, tédio... Aquela expressão era medo, algo raríssimo de se ver.

– Relaxa, essa parada já é minha...

E desceu. Era a quinta ou sexta vez que o fazia em pouco tempo, mas dessa vez a coisa parecia diferente. O olhar de Matheus parecia persegui-lo. Quando estava na metade do caminho, a toda velocidade, com o vento zumbindo nos ouvidos, apertou o freio traseiro. A força o pressionou para frente e por um instante ele achou que fosse ser atirado da bicicleta; pressionou os braços eretos contra o guidom e deslizou. Vários metros de agonia. A sensação era de que a qualquer momento a bicicleta se desgovernaria e ele, indefeso, se estatelaria no chão. Por fim chegou ao destino final.

Com tremores e calafrios pelo corpo, começou a subir em direção aos amigos. Quase nem se importou com a competição, mas uma rápida olhada em seu rastro o mostrou que ele estava no lugar mais alto do pódio.

– O seu não é mais o maior... – disse com sarcasmo, dirigindo-se ao amigo grandalhão. Thiago fez cara de pouco caso.

– Agora eu – Matheus montou na bicicleta – e depois você.

Bruno mastigou as bochechas.

Rodrigo encarou Matheus por alguns instantes. Sentiu a testa se enrugar da mesmíssima forma que vira há pouco no rosto dele.

– Cuidado – disse, mas sabia que ele faria pouco caso. A resposta foi exatamente a mesma que ele havia dado.

– Essa parada já é minha...

E Matheus desceu, pela quinta ou sexta vez. Rodrigo sabia que algo parecia diferente dessa vez, a forma como a silhueta dele estava sobre a bicicleta era outra, o ângulo da cabeça também.

Todos observavam. Matheus foi ganhando cada vez mais velocidade. Já estava próximo à marca dos primeiros rastros. Rodrigo sentiu o coração bater descompassado. Já sabia... Matheus freou e ficou para trás: a bicicleta seguiu em frente, ziguezagueando no asfalto. O corpo dele quase fez uma volta completa no ar antes de cair de ponta-cabeça no chão. Rodrigo sentiu a pancada na própria cabeça. Jogou a bicicleta no chão e desceu a rua correndo, surdo ao som de seus passos. Conforme foi se aproximando, a compreensão de que não pegaria ele dessa vez foi se formando. E quando viu o sangue em volta da cabeça e o pescoço em um ângulo torto, sua visão se turvou e ele não sentiu o impacto ao cair, inconsciente, próximo ao irmão.

Rodrigo acordou do torpor. Estava parado ao lado da entrada da capela. A visão do irmão, morto no chão, foi substituída pela visão de um caixão no centro da sala. Um caixão escuro, em contraste com o piso branco. Em volta, velas e coroas e, na parede à frente, um enorme crucifixo. Ondas de eletricidade se espalharam por seu corpo. Sentia um urro de agonia e fúria se formando em um cantinho dentro do peito e se direcionando ao pomo de adão. Uma injustiça, a incredulidade, a irrealidade daquilo o mataria a qualquer instante.

Trêmulo, caminhou até o caixão. Matheus parecia bem. A expressão serena, os olhos fechados, as mãos sobre a barriga: podia muito bem estar dormindo ou fingindo dormir, pronto para dar um grito quando ele se aproximasse. Brigariam e ririam. Como sempre foi. A vida inteira.

Uma faixa ao redor da cabeça. Algodões nas narinas. A pele estava pálida e o rosto lisinho. Logo pela manhã, Rodrigo o vira fazendo a barba diante do espelho, pouco antes de saírem com os amigos para inaugurar aquela descida que havia sido asfaltada naquela semana. Ele fazia a barba três vezes por semana, decidido a tirar do rosto a única coisa que podia para se diferenciar um pouco do irmão. Era o acordo deles. Depois de algum tempo, Rodrigo tiraria a barba e ele dessa vez seria o barbudo. E eles já imaginavam, se divertindo, as pessoas os confundindo...

Era ele mesmo que estava ali. Era seu próprio rosto morto que fitava, atônito. Tirando a barba, eles eram idênticos, sempre foram. Por fora, por dentro. O mesmo nariz pontudo, os mesmos lábios finos, as mesmas sobrancelhas grossas que quase se uniam, os mesmos cabelos castanhos cacheados. Os cabelos do irmão não apareciam; a faixa os cobria completamente.

“Eu não acredito que você me deixou”. Rodrigo tocou as mãos. Frias. Duras. Sem vida. “Você não tinha esse direito seu babaca, você não tinha o direito de ir sem me pedir, sem me avisar, ir sem mim. Não tinha, não tinha, não tinha...”

“Quem disse que eu decidi? E quem disse que eu iria sem você”?

Rodrigo desviou os olhos do irmão e encarou o irmão logo atrás do caixão, de pé. Estava vestido com a mesma roupa que usava naquela manhã, mas não estava de rosto liso; sua barba estava exatamente do mesmo tamanho da barba de Rodrigo.

“Uma pena, eu sei...” disse Matheus, olhando para o próprio corpo. Ele ficou pensativo por alguns instantes e em seguida o encarou novamente, cheio de malícia. “Vai ter que me aturar até o fim, eu prometo. E trate de fazer essa barba, agora eu sou o barbudo...”

Rodrigo sorriu.

– Ele está aqui – disse, olhando para trás. Familiares, amigos, várias pessoas o olharam cheias de compaixão. – Está barbudo e mandou eu tirar a barba...

Algumas continuaram olhando com compaixão e outras trocaram de expressão para uma de “é lógico que está”.

Rodrigo se virou novamente e o irmão havia desaparecido. Por alguns assustadores segundos pensou que ele havia partido; então o viu próximo à mãe deles, a um canto.

“Ela não me vê. É claro que não. Ajude ela. Vou dar uma volta e logo volto. Estou me sentindo mal vendo as pessoas tristes. Não posso fazer nada, que droga!”

“Pode ir, mas volte, por favor...”

“Volto logo, prometo!”

E num instante, Rodrigo estava abraçando e sendo abraçado pela mãe. Lágrimas diferentes escorreram de seus olhos, mas continuaram encharcando a barba – que ele tiraria em breve.