Moléculas

Luma encostou a testa no vidro frio da janela. O contato entre a pele quente e o material frio pareceu produzir um característico som. Seus trinta e nove graus de febre recém-medidos, contudo, não pareciam aliviados; pelo contrário, pareciam ter aumentado.

O corpo trêmulo e a cabeça pesada incomodavam, mas não mais que a dor que sentia dentro do peito. Era fato que estava a ponto de entrar em convulsão (em seu exagero de pseudomorimbunda), mas as sensações físicas eram um incrível nada perto do que sentia por dentro.

“Coisa de gente inútil”, a velha voz irônica em sua cabeça. “Tudo que é físico é real, o resto é futilidade, preguiça...”

Era verdade. Uma linda e terrível verdade. Reconhecer isso naquele momento era uma grande vitória com sabor de derrota. A vitória da realidade amargurante. A derrota da fantasia delirante. Sua teimosia de nada lhe valia naquele momento: teimar contra uma parte de si é tão útil quanto inventar uma forma de unir água e óleo.

A verdade. Crua. Nua. Onipotente. Diante dela percebeu ser capaz de nada sentir, de transformar-se em vácuo, em vazio.

Afastou a testa do vidro. Cambaleou em pé por um instante e em seguida sentou na cama. Se soubesse qual era o problema saberia como agir. Não era uma covarde, não era uma vítima; estava covarde e estava vítima. A diferença entre os verbos era inútil, como saber que estava com a garganta inflamada. Não era sempre assim. Estava assim. Sabia como lidar com a febre; já havia tomado remédio. Mas e quando se tem um sintoma de um problema desconhecido, o que é possível fazer?

“Gente inútil é assim mesmo, é uma preguiçosa vítima dos próprios preguiçosos atos...”

Levantou novamente, pois ficar sentada parecia aumentar a sensação de frio. Por trás dos vidros da janela – embaçados por sua respiração – fazia uma gelada noite de inverno. A geada pela manhã parecia iminente; um belo e frio branco sobre o verde que Luma – provavelmente – não veria.

Com o dedo desenhou uma estrela no vidro embaçado. Afastou-se e contemplou sua obra de arte. Estrela. Se havia algo de que Luma gostasse sobre si mesma era isso: Luma Estrela. Esse seu nome melódio, artístico, sensível... Àquela altura, porém, Luma experimentava uma sensação de despersonificação tão grande que seu belo nome parecia um amontoado desconexo de sons. Lu-ma. Lu-ma. Lu-ma. Lu. Lu. Ma. Ma. Luma. Luma. Lu, garganta vibrando, língua que estala no céu da boca e lábios que fazem biquinho. Ma, lábios fechados que se abrem em um estalo enquanto a garganta vibra.

Riu por um instante repetindo o próprio nome. Não era um riso de graça ou nervosismo; era algo vazio, oco como ela. Mas não era totalmente oca, tinha alma. A dor que sentia parecia queimar sua alma em banho-maria. Mas, alma? O que seria isso afinal de contar e por que doía tanto?

Concluiu rapidamente que alma era lábios arregalados que fazem biquinho, se fecham e se abrem novamente num estalo. E a dor...

Física, invisível, palpável.

A dor!

A dor de ser!

A dor de ser o que?

A dor de ser o que e quem?

A dor de ser o que e quem era!

Mas qual era o problema? A situação sempre havia sido cômoda, trivial.

A estrela continuava no vidro. A água condensada formava gotas que escorriam fazendo linhas verticais no desenho. Essas gotas, Luma concluiu, eram moléculas de água deslizando sobre um material translúcido que um dia havia sido areia. As gotas eram moléculas que haviam saído de seus pulmões...

Onde aquelas moléculas já haveriam estado antes de estarem ali, formando (e ao mesmo tempo destruindo) seu desenho? Haveriam estado no oceano, tão próximas das moléculas da areia que agora era vidro? Teriam um dia sido orvalho, caído de plantas ou de genitálias ou de olhos?

Era – a palavra certa lhe fugiu – engraçado estar ali diante da janela. A febre nada mais era do que o vulcão que havia dentro de si, aquela lava escaldante e destrutiva, condida desde sempre, que agora estava prestes a jorrar para todos os lados.

Os bonzinhos de carteirinha podiam discordam, mas Luma não via outra solução para o caso. O que fazer com um ser humano, uma bomba-relógio em uma iminente ameaçada de autodestruição?

Deixar com que se destrua e destrua junto o que houver em seu redor? Ou destruí-lo primeiro, de maneira segura?

É claro que para Luma a primeira opção era a melhor. Sua bondade utópica e seu difuso senso de redenção jamais permitiram que ela não enxergasse a bomba como um ser humano, com possibilidade de cura, perdão absolvição, salvação ou qualquer outro termo que significasse exatamente a mesma coisa. Sim, fosse a bomba outro ser qualquer, até mesmo seu pior inimigo, a compaixão ditaria suas ações e concepções. O problema era que a bomba não era ninguém senão ela mesma. Isso tornava tudo um grande monte de nada sem sentido.

A linda e doce compaixão, responsável por grande parte de seu orgulho de ser quem era (o principal pilar de sustentação de sua vida), adquiria uma desagradável coloração quando direcionada a si mesma. Sentir compaixão por si revelava a verdadeira face desse sentimento: era dó, pena. Em um instante Luma percebia que o doce sentimento que nutria pela humanidade era apenas um disfarce.

Não aceitava sentir pena de si. Provavelmente sentia pena dos outros, mesmo que sem perceber, mas não havia uma única maldita maneira de encarar isso quando estava diante do espelho, olhando para sua vitimez. O fato a irritava, envergonhava, ativava os modos de autodestruição e autossabotagem.... Agitava o vulcão que, mesmo tranquilo na maior parte do tempo, estava sempre lá, à espera de uma faísca em seu estopim...

Sentia, em alguma esfera transcendente de seu ser, que havia algo oculto nisso tudo. Uma espécie de lição, algo que precisasse aprender. Gostava de aprender. Era totalmente a favor do autoaprimoramento e da autodescoberta. Mas havia certas camadas da cebola de seu ser que não podiam, não deveriam ser descascadas. E com todo o estoque de sinceridade que tinha, estava farta de tantos autos. Sim, ser sincera consigo não era tão fácil quando ela gostaria de achar que era...

– Ser louca é fácil – a estrela, já bem deformada, sumiu completamente sob suas mãos. Não podia mais suportar o fardo, suas costas já haviam perdido a força.

Olhou para a porta do banheiro. A porta olhou de volta, como se a desafiasse. O desafio era a faísca que o vulcão tanto aguardava.

Como que por mágica, viu-se diante do espelho. Talvez estivesse delirando por conta da febre, talvez tivesse se teletransportado, talvez estivesse nascendo ali, diante do espelho, ou morrendo...

Quem a encarou no espelho foi uma jovem ruiva, lá pelos seus vinte e poucos anos. A jovem – nem tão jovem assim – estava com as bochechas tão coradas que as sardas, no geral um destaque em sua face, estavam parcialmente invisível. Os olhos cor de mel (melda, segundo Alessandra, sua prima e melhor amiga) estavam baixos, cansados, sem brilho. Os cabelos cor de fogo despenteados e sebosos denunciavam não somente a falta de banho, mas também a falta de ânimo. No geral vaidosa, Luma era tão transparente quanto aquele vidro da janela: o que estava vendo no espelho era mais do que uma Luma resfriada, com a garganta inflamada e com quase quarenta graus de febre; era uma Luma que, por dentro, estava destruída.

Se conseguisse chorar talvez extravasasse o que sentia. Mas não conseguia. Os olhos pareciam tão secos que o simples movimento natural para mirar outro ponto focal parecia fazê-los ranger. Cogitou incluir um pouco mais de drama ao momento, indo até o quarto, pegando as gotas de água de sua respiração do vidro da janela e colocando-as nos olhos. A ideia fez a jovem do espelho rir e por um instante os olhos secos pareceram se iluminar. Encarando os olhos, Luma começou a cantar:

Ei, não entre sem bater!

Espera...

Que eu já vou abrir...

Você veio sem me avisar,

Eu nem tive tempo de me arrumar...

Espera aí que eu...

Eu vou abrir duas janelinhas,

Nessas janelinhas você vai ver,

Que o meu quarto está desarrumado,

E que sala está uma bagunça...

Mas eu vou abrir a porta,

Por que sei que você não se importa,

Com chatice de organização...

Dá trabalho fazer faxina no coração,

De uma menina....

A música de sua vida. Ouvira ela pela primeira vez quando era criança, mas a letra a descrevia cada vez mais conforme o tempo passava. A alma estava agora em carne viva. Havia chegado o momento.

Luma abriu o armário. Luma pegou um frasco. Luma enfiou um dedo no frasco. Luma puxou um comprimido. Luma levou o comprimido à boca. Luma engoliu.

Luma repetiu mecanicamente o ato por exatas trinta e cinco vezes, lentamente, sem quebra de ritmo. Os últimos comprimidos foram os piores. Alguma molécula de sentinela em seu organismo parecia ter percebido o perigo e ligado o alarme.

Antes de usar o teletransporte pela segunda vez naquela noite, deu uma última olhada para o espelho. E já estava deitada na cama. Nem se cobriu. Não por que já não sentisse mais frio, mas sim porque já não sentia mais nada. Nada físico. Nada mental. Nada espiritual.

Uma molécula de água no vidro refletiu os olhos de Luma lentamente se fecharem. Outra refletiu uma movimentação do lado de fora da casa.

E a molécula chamada Luma talvez voltasse para o oceano. Talvez encontrasse a molécula de areai que tanto havia procurado. Talvez fosse impedida de seguir por uma molécula que quisesse lembra-la de quantas moléculas a queriam por perto...