Filosofia de boteco

Deduzo que não é muito tarde. Umas onze horas, talvez. Não que faça alguma diferença, tempo é algo extremamente relativo. Para quem se diverte, passa rápido; para quem se vegeta, passa devagar. Para quem morre, nem passa: deixa de existir.

Meu tempo, não tenho muito medo de revelar, é terceiro. Aquele tempo que parece não existir. Segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, séculos, milênios... Big Bang! E eu aqui, sem saber quem sou, sem saber onde ir, sem saber tanta coisa que não sei. Não é minha culpa. A vida é naturalmente assim. Começa, passa, termina.

- Não é bem assim.

De novo. Já não basta aturar meus próprios devaneios, ainda preciso te aturar. Faz um favor? Vá à merda! Deslize suavemente nela, se encharque e pelo amor de Deus, me deixa em paz!

- O problema meu caro, é que você não sabe o que é ter paz.

Vou te ignorar. Sério. Meu leitor quer ouvir o que EU tenho a dizer. Recolha-se em sua insignificância.

Eu me chamo Roberto. Roberto alguma coisa. Não que faça diferença, não que não faça, não que...? Não. Basta. Roberto é meu nome de batismo, mas não gosto muito dele. É meio feio, acho sonso, não tem muito sentido. Ro-ber-to. Ro-ber-to. Ro-ber-to. Ro-ber-to. É só repetir várias vezes que você vai entender o que quero dizer. É só um monte de som, um monte de sílabas. Nada de nada.

Rio às vezes quando vejo pessoas de importância dizendo seu nome com arrogância. Ah, por favor! Que mania escrota tem o ser humano de se achar melhor, seja por um nome diferente, ou por meros pedacinhos de papel coloridos que podem comprar qualquer coisa. Tenho pena de gente assim.

- Pena não é um bom sentimento...

Já mandei você calar essa boca? Não! Pena é um sentimento engraçado. Melhor ter pena que desprezo, melhor ter medo que ódio ou, quem sabe, até mesmo amor. Minha pena dessa gente é engraçada, eu rio de tudo isso. É gostoso.

- A melhor forma de dizer o que você quer dizer é me deixando falar!

Cale a boca! EU estou no comando! Fique aí em seu escudo de insignificância e não me encha mais!

- Você me obrigou a isso...

Pam! Plim! Tchuaaa!

É engraçado ver que falamos das pessoas e no fundo temos consciência de que nosso teto é de vidro. Fulano é uma má pessoa, beltrano é uma pessoa invejosa, ciclano é isso e assado. O que a gente acaba não reparando é que cada vez que falamos de alguém, na realidade estamos falando de nós mesmos. Quem nunca sentiu uma invejinha na vida, hein? Você leitor, já sentiu? Sabe aquela coisinha esquisita que a gente sente quando pensa, por que não comigo? Eu mereço isso, e não você. Pois é. Esse sentimentozinho desagradável que vem a nós e, pode ter certeza, podemos ser os melhores atores do mundo, não conseguimos disfarçar! Ele resplandece, ecoa, fica estampado em nossa cara, em nosso tom de voz. Não tem como esconder.

- Você toma meu lugar para fazer isso?!

Psiu. Quietinho aí coleguinha.

E é assim. É tão fácil falar que amamos alguém, tão fácil dizer que desejamos o bem a alguém. Me conta aí leitor, você é uma boa pessoa? Deseja o bem para aquelas pessoas que você gosta? Uhum, eu sei que sim. Esse bem que você deseja é igual ou maior do que aquele que você deseja para você mesmo? Não? Se por um acaso desses da vida a pessoa que você desejou o bem conseguir algo maior, melhor do que o que você conseguir, ainda assim você vai continuar desejando o bem?

- Fala sério, estou até gostando agora...

A coisa é que todos nós temos consciência disso. Somos todos maus e impuros assim por dentro. Santos? Iluminados? Coisas assim não existe. No fundo todo mundo é meio mal por dentro. Todo mundo tem algo em si de que não pode se orgulhar. É e sempre será assim.

Agora a questão que fica no ar: se todos somos assim, que direito achamos que temos de falar dos outros para diminuir nossa própria culpa?

Pam! Plim! Tchuaaa!

Os dois viram mais um gole da caipirinha. Desce ardendo goela abaixo, se acomodando no estômago e liberando álcool no cérebro sem pressa. Ficar bêbado é assim: queimar a goela, foder com o estômago, soltar palavras pela boca com bafo de pinga.

E agora sim. Eu entro nesse discurso. Que esses três fiquem aí. Eu sou o dono dessa parada e quem tem o poder sobre eles. Minha filosofia é muito melhor, muito mais digna!

Meu sonho é não ver maldade. Sabe quando a gente pensa na vida, no que já fomos, e nos damos conta de que em algum momento não éramos capazes de ver a maldade? Que bom aqueles tempos, né. Como era gostoso pode olhar para todo mundo e só ver coisas boas, não ter medo da inveja, do ciúme, do rancor. Não ter nada disso em si mesmo também. O que o nosso coleguinha disse agora pouco até tem sentido: a partir do momento em que vemos a maldade nos outros ela nos contamina também.

Roberto, você ainda está aí?

- Ele bebeu demais, acho que está em coma alcoólico...

Que coisa. Não preciso beber para filosofar e fazer poesia. Será que ele tem inveja de mim?

- Tem, ele já me contou uma vez.

Que coisa mais feia, eu lembro de uma vez ter comentado isso e ter visto aquela aura negra em torno dele.

- Hmmm, você é santo.

Não, claro que não. Mas me esforço.

- E por que você fica tão brabo quando ele dá em cima das mulheres?

Eu... Não... Não sei do que você está falando.

- Ou você tem ciúmes dele, ou tem inveja do talento que ele tem em deixar as mulheres com as pernas bambas, prontinhas para ir para cama.

Eu... Eu...

Pam! Plim! Tchuaaa!

Há há há! Voltei! Como é fácil lidar com esses idiotas. No fundo quem sabe mais é quem conta menos, quem ouve mais é quem fala menos...