Aliviado, Androceu viu Ramayana apagando o fogo que saia de um tubo com a ponta alargada, outrora, usado por viciados para fumar pedra. Pedra que consumiam. E sumiam vagando no mundo feito zumbis. Ela apagava os cachimbos de craque, com a água que corria do lado direito do templo.
Escondido na penumbra de suas más inclinações, o Anjo Negro se divertia e bradava com voz cavernosa: ‘Não tem jeito! Condenados! Todos condenados. ’ Ramayana ofereceu água àqueles que tinham sede. E suas almas, antes manchadas, iam tomando brancura. Com efeito, o anjo de voz gargalhada, desapareceu numa nuvem de fumaça negra.
— Bem — vindo, Androceu — disse Ramayana.
Seguido por uma multidão de índios, João Velho e outros vaqueiros cortavam a betônica no peito, correndo boi. ‘Pega e leva ao estábulo para adorar o Menino Santo’ — disse o patrão.
— O boi é arredio demais, Generoso!
— Então leva boto cor-de-rosa. Leva também Mimosa com a cria.
A onça pintada, no quadro de parede, tinha a boca fechada.
Sem temor nem medo, uma gazela pastava ao lado da onça. O menino que antes chorava sem a graça do Batismo, agora batizado por Corina, dava risadas, enfiava a mão na boca da serpente, e retirava dali um pintinho chuviscado. Vivo. A galinha pintadinha catava migalhas com seus pintinhos no território do gavião, e o gavião comia milho. Vintém elevou-se à categoria de tostão. Depois promovido a cruzado, cruzeiro... Mas foi rebaixado para cruzeiro novo, mais tarde, cruzado que não cruza. Cresceu novamente tornando-se cão real. Mas a coroa que lhe deram, foi retirada. E ele desejou voltar ao tempo dos mil réis e do vintém. Latia no purgatório. Choramingava. Nada podia fazer por si mesmo.
João Velho consulta o livro da vida e reescreve sua história:
— Não quero vaqueiro caçando onça! Vaqueiro é pra correr atrás de boi.
— Alguém viu José Lino?— Quis saber Euzébia.
—Foi colher lírio do vale com Smith e Reicka.
—Quem é Reicka?
— A cigana que passou por Campo Grande, e deixou o coração de nosso filho apertado.
— Nunca soube!
— Nem poderia, Euzébia! Há verdades que só podem ser reveladas após a morte.
— O coração do homem guarda muitos segredos.
— A mulher é toda um mistério.
— Não sabia que cigano ia para o céu.
— Reicka está aqui. Aquela tenda listrada é dela.
— Aquela é a tenda que você pôs abaixo com um chute?
— Não! Aquela parte foi apagada na confissão que fizemos na festa do vaqueiro na fazenda Campo Grande.
— E as onças que você matou. Também estão no céu?
João Velho desconversou.
— Os tempos celestes não conhecem o ontem nem o amanhã. Tudo é hoje. Por isso, Deus não olha o passado. Passado, presente, e futuro, só existem no calendário dos homens. Este mesmo Deus que fez o mundo e tudo que nele existe, fixou os tempos e os limites de sua habitação sobre a terra.
— Bichos vão para o céu?
— Alguns! O cavalo que cochilava à beira da cerca, não compareceu. Fingia-se doente. Era mentiroso. E foi mordido pela serpente.
— O animais vão para o céu? repetiu a pergunta, Euzébia, que não admitia que João Velho escondesse dela alguma coisa, afinal, eram marido e mulher.
— Não tenho certeza.
—Como não vão para o céu? Depois dos muros abissais, tem um dragão lançando chamas e um leão rugindo.
— Ali não é o céu. Aquele é o dragão, a antiga serpente.
— Nossa, a serpente cresceu. Tornou-se dragão?
— Sim, mas tombará como Golias, por causa de sua arrogância. Aliás, já caiu.
— Bicho Papão é do Bem ou do Mal?
— Bicho Papão é lenda para assustar criança desobediente.
— Acho que entendi — disse a mulher — Tudo que causa desordem é do mal. Qual benefício que o bicho papão produz na mente das crianças?
— Benefício...benefício...Não sei. Muitos também não sabem e apresentam o bicho papão às suas crianças. Às vezes até maquiado com outras denominações como halloween, rei leão e outros tantos do desenho animado.
— A carimbamba existe?
— A carimbamba não existe nem no céu nem na terra.
— Não encontrei Mimosa com sua cria!
— Bicho não vai para o céu não, João Velho.
— Se vai não sei. No mundo, bicho tem poder. Cavalo desfila com faixa no pescoço. E Leão é rei com palácio estabelecido na capital. Na terra, no céu e no mar, em cada um desses mundos mora um ser dominante.
— E o bicho homem domina tudo.
— Domina até outro homem, mas se deixa dominar por uma mulher.
Xandão aparece puxando Mimosa pelo cabresto, seguida por um bezerro castanho, muito famoso.
— Tire o cabresto da vaca, Xande! Aqui não há cabrestos. Tudo é regido pelo amor. E no amor não há cabresto.
Euzébia se levantou do sofá de camurça azul, decorado com duas faixas brancas no formato de uma cruz. Olhou com carinho para João Velho, aproximando-se do outro vaqueiro, perguntou:
— O senhor se queixa do casamento, compadre Xande?
— Nunca me casei!...
— Aquele velho robusto é Zé Pilão?
— Aqui no céu chamamos as pessoas pelo nome de batismo. Se o apelido não for pejorativo, até que vai. Tem Padre Zezinho, Padre Chiquinho... Sarcasticamente, o diferente nas pessoas é colocado em evidência, pregado na testa como um rótulo que precisa ser lavado sete vezes no rio Jordão.
Cada um tem sua lepra. Aquele que nasceu com um defeito físico, logo perde o nome e recebe o defeito como batismo: ‘Ô, perneta, faz favor!’... ‘Ô bucho de lama...’ ‘Tampinha de Binga, venha cá!’ ‘Ô Vara de Tirar Mamão, troque esta lâmpada para mim!...’ ‘Carequinha, faça-me um favor!’ E vai por aí afora pisando nos calos sem pisar; machucando e fingindo não machucar. Zé Pilão tinha cintura fina, espáduas largas e quadril avantajado. Se tirasse a barba e vestisse saia... Não teve filhos, mas adotou uma menina que mais tarde se tornou esposa de Turíbio Soberbo.
João Velho dominava a conversa, e como ninguém o interrompeu, ele continuou “O povo conta que Soberbo batia na mulher. Matou o sogro Zepillon, porque se pôs em defesa da filha. Quero dizer, José Evangelista de Jesus. Uso o apelido dele, só para situar melhor a história.
***Escondido na penumbra de suas más inclinações, o Anjo Negro se divertia e bradava com voz cavernosa: ‘Não tem jeito! Condenados! Todos condenados. ’ Ramayana ofereceu água àqueles que tinham sede. E suas almas, antes manchadas, iam tomando brancura. Com efeito, o anjo de voz gargalhada, desapareceu numa nuvem de fumaça negra.
— Bem — vindo, Androceu — disse Ramayana.
Seguido por uma multidão de índios, João Velho e outros vaqueiros cortavam a betônica no peito, correndo boi. ‘Pega e leva ao estábulo para adorar o Menino Santo’ — disse o patrão.
— O boi é arredio demais, Generoso!
— Então leva boto cor-de-rosa. Leva também Mimosa com a cria.
A onça pintada, no quadro de parede, tinha a boca fechada.
Sem temor nem medo, uma gazela pastava ao lado da onça. O menino que antes chorava sem a graça do Batismo, agora batizado por Corina, dava risadas, enfiava a mão na boca da serpente, e retirava dali um pintinho chuviscado. Vivo. A galinha pintadinha catava migalhas com seus pintinhos no território do gavião, e o gavião comia milho. Vintém elevou-se à categoria de tostão. Depois promovido a cruzado, cruzeiro... Mas foi rebaixado para cruzeiro novo, mais tarde, cruzado que não cruza. Cresceu novamente tornando-se cão real. Mas a coroa que lhe deram, foi retirada. E ele desejou voltar ao tempo dos mil réis e do vintém. Latia no purgatório. Choramingava. Nada podia fazer por si mesmo.
João Velho consulta o livro da vida e reescreve sua história:
— Não quero vaqueiro caçando onça! Vaqueiro é pra correr atrás de boi.
— Alguém viu José Lino?— Quis saber Euzébia.
—Foi colher lírio do vale com Smith e Reicka.
—Quem é Reicka?
— A cigana que passou por Campo Grande, e deixou o coração de nosso filho apertado.
— Nunca soube!
— Nem poderia, Euzébia! Há verdades que só podem ser reveladas após a morte.
— O coração do homem guarda muitos segredos.
— A mulher é toda um mistério.
— Não sabia que cigano ia para o céu.
— Reicka está aqui. Aquela tenda listrada é dela.
— Aquela é a tenda que você pôs abaixo com um chute?
— Não! Aquela parte foi apagada na confissão que fizemos na festa do vaqueiro na fazenda Campo Grande.
— E as onças que você matou. Também estão no céu?
João Velho desconversou.
— Os tempos celestes não conhecem o ontem nem o amanhã. Tudo é hoje. Por isso, Deus não olha o passado. Passado, presente, e futuro, só existem no calendário dos homens. Este mesmo Deus que fez o mundo e tudo que nele existe, fixou os tempos e os limites de sua habitação sobre a terra.
— Bichos vão para o céu?
— Alguns! O cavalo que cochilava à beira da cerca, não compareceu. Fingia-se doente. Era mentiroso. E foi mordido pela serpente.
— O animais vão para o céu? repetiu a pergunta, Euzébia, que não admitia que João Velho escondesse dela alguma coisa, afinal, eram marido e mulher.
— Não tenho certeza.
—Como não vão para o céu? Depois dos muros abissais, tem um dragão lançando chamas e um leão rugindo.
— Ali não é o céu. Aquele é o dragão, a antiga serpente.
— Nossa, a serpente cresceu. Tornou-se dragão?
— Sim, mas tombará como Golias, por causa de sua arrogância. Aliás, já caiu.
— Bicho Papão é do Bem ou do Mal?
— Bicho Papão é lenda para assustar criança desobediente.
— Acho que entendi — disse a mulher — Tudo que causa desordem é do mal. Qual benefício que o bicho papão produz na mente das crianças?
— Benefício...benefício...Não sei. Muitos também não sabem e apresentam o bicho papão às suas crianças. Às vezes até maquiado com outras denominações como halloween, rei leão e outros tantos do desenho animado.
— A carimbamba existe?
— A carimbamba não existe nem no céu nem na terra.
— Não encontrei Mimosa com sua cria!
— Bicho não vai para o céu não, João Velho.
— Se vai não sei. No mundo, bicho tem poder. Cavalo desfila com faixa no pescoço. E Leão é rei com palácio estabelecido na capital. Na terra, no céu e no mar, em cada um desses mundos mora um ser dominante.
— E o bicho homem domina tudo.
— Domina até outro homem, mas se deixa dominar por uma mulher.
Xandão aparece puxando Mimosa pelo cabresto, seguida por um bezerro castanho, muito famoso.
— Tire o cabresto da vaca, Xande! Aqui não há cabrestos. Tudo é regido pelo amor. E no amor não há cabresto.
Euzébia se levantou do sofá de camurça azul, decorado com duas faixas brancas no formato de uma cruz. Olhou com carinho para João Velho, aproximando-se do outro vaqueiro, perguntou:
— O senhor se queixa do casamento, compadre Xande?
— Nunca me casei!...
— Aquele velho robusto é Zé Pilão?
— Aqui no céu chamamos as pessoas pelo nome de batismo. Se o apelido não for pejorativo, até que vai. Tem Padre Zezinho, Padre Chiquinho... Sarcasticamente, o diferente nas pessoas é colocado em evidência, pregado na testa como um rótulo que precisa ser lavado sete vezes no rio Jordão.
Cada um tem sua lepra. Aquele que nasceu com um defeito físico, logo perde o nome e recebe o defeito como batismo: ‘Ô, perneta, faz favor!’... ‘Ô bucho de lama...’ ‘Tampinha de Binga, venha cá!’ ‘Ô Vara de Tirar Mamão, troque esta lâmpada para mim!...’ ‘Carequinha, faça-me um favor!’ E vai por aí afora pisando nos calos sem pisar; machucando e fingindo não machucar. Zé Pilão tinha cintura fina, espáduas largas e quadril avantajado. Se tirasse a barba e vestisse saia... Não teve filhos, mas adotou uma menina que mais tarde se tornou esposa de Turíbio Soberbo.
João Velho dominava a conversa, e como ninguém o interrompeu, ele continuou “O povo conta que Soberbo batia na mulher. Matou o sogro Zepillon, porque se pôs em defesa da filha. Quero dizer, José Evangelista de Jesus. Uso o apelido dele, só para situar melhor a história.
Trecho do livro: "Estrela que o vento soprou."
ALGUNS COMENTÁRIOS:
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16/03/2018 20:18 - Zuleika dos Reis
Ah, de muito sabor!
Para o texto: Bicho vai para o céu? (T6281910)