Sem o brevê, sem incorporar-se à Esquadrilha da Fumaça, não poderia fazer um loop diante do olhar atônito de Vannini, senão naquela hora. Deu ordens à sua mente: Fernão, você é uma folha. Estendeu os braços como se quisesse abraçar o mundo, abraçar tudo que antes desprezava. Todo seu ser pareceu leve.  Deixou o corpo cair, e rolar tocado pelo vento. Flutuava,  sem nenhum controle ou direção por ele definida. Não sabe dizer quanto  tempo durou a ‘viagem’. Nem mesmo sabia se estava vivo, ou morto, se sonhava ou estava acordado. A água quebrava suas carnes, ardendo como choque contra uma parede rochosa.
 Estava tonto.
 As águas o envolveram. Algas passavam sobre sua cabeça e um camarão com sete barbas de profeta, disse-lhe: ‘Não queiras ir para Tárcis, quando eu te mandar para Nínive’.
Fechou os olhos. Esqueceu o medo, e ateve-se às noções de sobrevivência. ‘Só tente salvar um náufrago, se tiver certeza de que não vai afogar-se com ele’. ‘ Calma, Fernão, calma! ...’
Tudo estava escuro, muito escuro... Nem mesmo o clarão da aeronave em chamas, Fernão podia ver. Teria perdido a visão? Rompido o  cristalino? Era cedo para afirmar ou negar sequelas. Que prova lhe daria o céu de que ele estava vivo? Agradeceu a Deus,  porque sentia dor. Logo, estava vivo. Talvez cego. Visto que não enxergava uma nesga de luz na escuridão da noite.
 O medo invadiu sua alma: ‘Cego sobrevive  sozinho numa ilha? Como encontrar alimento?’ Não era hora de pensar em comida. Para que se preocupar? Os mortos não comem, nem os vivos  podem enxergam no breu da noite. Restava-lhe esperar por resgate, se antes não fosse tragado pelas águas ou engolido por um peixe.
Recordou-se da conversa com o pai.
— Peixe grande comeu o profeta?
Sem esperar a resposta, (embora o soubesse), agarrou-se  ao paredão rochoso, que separa as águas do elemento sólido, e lutou contra as ondas que tentavam arrancá-lo como se ele fosse um mexilhão grudado numa  pedra. Ouviu o grito de uma gaivota e sentiu sobre sua cabeça as negras asas de um corvo. Estava prestes a ser comido..
 No recuo das águas, o náufrago respirava e vez por outra, uma golfada penetrava suas narinas arrancando-lhe em ondas alternadas o sopro de vida.  Lentamente, desgarrou-se do paredão, caindo estatelado sobre pedras pontiagudas. Arrastou-se, até conseguir levantar apoiando-se na muralha. Veio a aurora rasgando o véu da noite e Fernão pôde ver corpos que boiavam levados pela correnteza. A aeronave também viajava,  em partes menores, para o abismo insondável do mar.   Ele pôs-se de pé. E gemeu. E chorou. E sorriu... É doce a vida no mar.
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Adalberto Lima, últimos capítulos de "Estrela que o vento soprou."