Hipócritas

E tendo nós chegado ao sexto fosso do Oitavo Círculo do Inferno, vimos, sob o céu eternamente encoberto por sombrias nuvens de tempestade, um grupo de almas que gemiam e choravam, caminhando vergadas sob o peso das pesadas capas de chumbo que vestiam, revestidas por fora de ouro brilhante.

- Por que, meu guia, - perguntei - estas tristes figuras se arrastam sob o peso de capas tão magníficas?

- Olha ao teu redor e vê se reconhece alguém - respondeu-me ele.

Duas almas, expressão vincada de dor, aproximavam-se, arrastando penosamente os pés. Vi então que se tratavam do juiz S. e do promotor N., que em vida haviam sido louvados como paladinos da ordem e da justiça, mas que, soube-se depois, agiam de comum acordo para vender sentenças e aumentar penas de inimigos do Príncipe.

- Como então, este é o fosso dos hipócritas? - Comentei.

- Tu o dissestes - retrucou-me o guia.

Ao nos ouvir conversar, S. parou, substituindo a expressão de dor pela de curiosidade.

- Olá! Quem é você, que se parece com um vivente e não usa a nossa capa de chumbo?

- Pois sou mesmo um vivente, nascido na grande Terra de Uber... a mesma que o senhor tanto prejudicou com suas sentenças fraudulentas, juiz S. - atalhei em tom acre.

S. e N. entreolharam-se.

- Carregar esta capa de chumbo pela eternidade já é um grande castigo... mas ser insultado por um vivente não deveria fazer parte do suplício - resmungou N. - Acho que deveríamos registrar uma queixa formal contra ele. E, talvez, pedir redução da pena.

- Bem pensado - ponderou S., mão no queixo.

- Como então, mesmo condenados a vagar pelo Malebolge, vocês ainda se acham tão superiores às gentes comuns que pensam poder conseguir qualquer benefício por parte de Lúcifer? - Provoquei.

- De Lúcifer não, - disse-me N. - mas você certamente pode mandar rezar algumas missas em nossa intenção. Para que possamos ascender para o Purgatório, digamos.

Dei uma gargalhada.

- Estão loucos, além de condenados ao suplício eterno?

N. abriu um sorriso pálido, e prosseguiu, em tom de ameaça:

- Se você é mesmo um vivente, saiba que nossos parentes continuam lá em cima, no mundo dos vivos... e ocupando os mesmos cargos que ocupávamos. Pode ter certeza de que, se não mandar rezar as tais missas, a sua vida também vai se tornar um completo inferno.

- Mas sem as capas de chumbo - acrescentou S., dedo em riste.

E, sem se despedir, puseram-se a andar, arrastando os pés pela cinza vulcânica que cobria o solo árido. Voltei-me preocupado para meu guia.

- Devo levar a sério esta intimidação?

Braços cruzados, ele me respondeu:

- O que eu lhe disse sobre não ofender os mortos?

- Mas eu fui ameaçado! - Protestei.

- Só depois que os provocou.

E, aproximando-se para cochichar no meu ouvido:

- Não se preocupe! Basta procurar um padre tão hipócrita quanto estes dois... certamente as missas que ele oficiará não serão consideradas para qualquer abatimento da pena!

- Olha que não deixa de ser uma boa ideia... e eu ainda posso ter o reconhecimento das famílias de S. e N. - ponderei.

Em algum lugar no Nono Círculo, uma gargalhada horrenda reboou pelos céus toldados de nuvens negras.

- [17-02-2018]