Coração Envenenado.

I

“No one ever thought this one would survive

Helpless child, gonna walk a drum beat behind

Lock you in a dream, never let you go

Never let you laugh or smile, not you.”

Ele entrou no corredor referente as facas no grande supermercado no centro da cidade. Naquele mês estava quase completamente lotado, diversos carrinhos de aço sendo levados por pessoas apressadas. Havia também o choramingo de algumas crianças, funcionários enfileirando produtos nas prateleiras amarrotadas, caixistas entediadas fazendo movimentos automáticos. Era dolorosamente comum, intragável. Ele não aguentava mais.

O corredor das facas era extenso, vários tamanhos pontiagudos que serviam para cortar e triturar. Passando por entre aquele corredor, o sentimento dentro do rapaz era boa parte mórbido, pois o quê iria cortar não seria uma carne para comer, quiçá a assaria. Ele parecia estar escolhendo algo que doesse menos. E estava. Ao mesmo tempo queria que doesse, empalasse transgredindo todos os músculos e lhe trouxesse alguma saída para aquela dormência. O som do cotidiano ao seu redor não surtia efeito senão um baque surdo e abafado dentro dos tímpanos apáticos. Ele não sabia quando aquilo tinha começado, sempre foi uma criança tímida, um adolescente cheio de paixões não-recíprocas e notas razoáveis no boletim, mas teria um futuro brilhante. Era aquilo que os psicólogos da escola diziam, que tinha um futuro brilhante pela frente, com certeza aquelas moças no caixa também devem ter ouvido a mesma coisa. Todos deviam ter um futuro brilhante pela frente, contudo, o brilhantismo é relativo. Que diferença faz ser um engenheiro ou um caixista de supermercado se o baque surdo é o mesmo dentro dos tímpanos apáticos? O rapaz sentia dor, e nessa dor vinha a dormência. Era tanto que pensou, vendo seu reflexo nas facas enfileiradas, como conseguiu sobreviver até agora.

Teria sido bem sucedido se as visões não tivessem começado. Se os seus sonhos não tivessem atravessado o real da fantasia, saltando para fora da sua mente, tomando formas bizarras.

Ergueu a mão, escolheu uma faca comprida e pontiaguda. Seu cabo era preto. Então se lembrou do sonho da noite passada, que começou em outras noites passadas, deixando o seu coração não apenas dormente, mas envenenado.

II

Nunca conseguiu dormir muito bem, seu sono era tão desgovernado como um trem ignorante quanto aos seus limites. Mesmo assim nunca deixou de gostar do seu descanso, jamais temeu dormir. Até seus pesadelos, que eram borrões pretos quando acordava sem saber muito bem o que tinha realmente acontecido, tomarem forma, textura e personalidade. Ele sabia que tinha personalidade, podia senti-lo se esgueirando sem rosto, sem expressão, mas havia conteúdo naquela sombra aparentemente oca. Quando a sombra se aproximava, geralmente não conseguia se mover, falar, gritar. Era apenas a sombra de uma pessoa alta na porta do seu quarto, o negror se movimentando consigo como um líquido apar da gravidade, dançando e serpenteando no ar. O rapaz queria gritar, chamar seus pais no quarto ao lado, fechar a porta, esconder-se. Mas não conseguia se mover, estava grudado na própria cama, empapando as colchas de suor, quase se urinando. Arregalava bem os olhos, tinha a absoluta certeza de estar com os olhos abertos dentro de um próprio sono que arrancava toda a lógica de ser apenas um sonho, afinal, era real. O cheiro do seu suor era real, a dor na garganta seca também, o abajur reagindo a presença da criatura acendendo e apagando, oscilando, rapidamente.

Durante dias a sombra permaneceu na porta, e quanto dava um passo para frente, desaparecia e o rapaz se sentava na cama pela manhã, o despertador berrando, lembrando que era um sonho e estava acordado dentro desse sonho. A criatura parecia ter algum poder no tempo, algo assim, o rapaz não compartilhou com ninguém. Começou a tornar-se cada vez mais apático, sua solidão aumentou, a falta de apetite acompanhava suas olheiras fundas e cabelos desarrumados. Durante a aula, sentia aquela impressão aterrorizante que, se caísse no sono, a sombra apareceria ali no meio da explicação do professor, dançando suas chamas negras sem gravidade pelos alunos.

“Deve ser alguma coisa a ver com a adolescência, querida.” Ele ouviu seu pai dizer da cozinha quando não foi jantar. “Sabe como são esses garotos. Problemas na escola, alguma menina que quebrou seu coração.” Sua mãe respondeu: “Deve ser por causa daquele lixo punk que ele ouve. E se tiver usando drogas? Eu não vou admitir isso nessa casa.” A voz abafada de seu pai se sucedeu: “Nem a música ele está ouvindo mais. Acho que irei levá-lo ao médico.”

Ouvindo o diálogo que tentava ser sussurrante dos seus pais preocupados, o rapaz clicou na aba de pesquisa no computador, pesquisando: PARALISIA DO SONO.

“A paralisia do sono é uma condição caracterizada por uma paralisia temporária do corpo imediatamente após o despertar ou, com menos frequência, imediatamente antes de adormecer.

A paralisia do sono propriamente dita acontece a todas as pessoas sempre que dormem. O distúrbio começa quando a pessoa acorda e a paralisia do sono ainda está ativa. Essa é a condição estudada pela medicina do sono.

Fisiologicamente, ela é diretamente relacionada à paralisia que ocorre como uma parte natural do sono REM, a qual é conhecida como atonia REM. A paralisia do sono ocorre quando o cérebro acorda de um estado REM, mas a paralisia corporal persiste. Isto deixa a pessoa temporariamente incapaz de se mover. Além disso, o estado pode ser acompanhado por alucinações hipnagógicas….”

Ele chegou a sorrir por um momento, nomeando a criatura como Alucinação Hipnagógica. Algo relacionado a uma sinestesia devido o sono REM. Vários comentários em outros sites exibia vários pacientes que faziam tratamentos e ficavam bem. A criatura não era real, não conseguiria machucá-lo.

Desligou o computador, dormiu bem. Não houve nada.

III

“Making friends with a homeless torn up man

He just kind of smiles, it really shakes me up.

There's danger on every corner but I'm okay

Walking down the street trying to forget yesterday.”

Seus pais o levaram a um consultório de um clínico geral. O médico ouviu pacientemente os relatos do rapaz sentado usando uma esfarrapada jaqueta de couro e um coturno sujo. Aquela moda adolescente que os faz andar como mendigos. De qualquer forma, sorriu amigavelmente a seu paciente depois do que ouviu, a descrição perfeita da Paralisia Do Sono.

--- Essa criatura que se refere nunca conseguiu tocá-lo? --- Perguntou.

--- Não, nunca. --- Respondeu aliviado --- Mas geralmente eu me sinto muito mal quando acordo.

--- Sente-se mal no sentido de não ter conseguido descansar direito?

--- Também. É mais uma sensação de …--- O rapaz deu de ombros --- Não conseguir mais sorrir, ou me divertir. Quando a sombra aparece, estou preso no sonho, e quando desaparece estou preso na realidade.

--- É comum a Paralisia Do Sono deixar uma pessoa bastante perturbada, mas eu irei lhe passar alguns medicamentos prescritos. Um calmante e um antialucinógeno para começar, e se surtir efeito, continue tomando alternando visitas a um psicólogo. Em breve os sonhos irão diminuir. Está se sentindo pressionado na escola?

--- Ah, o normal.

--- Não desista da escola, você tem um futuro brilhante pela frente. --- Apesar de ver um garoto de cabelos compridos, oleosos, usando roupas em farrapos na sua moda adolescente incompreensível para adultos engravatados, o médico foi sincero. Apertou a mão dele e assegurou aos dois pais preocupados na sala de espera que não era um caso de drogas.

IV

Tomou dois comprimidos, deixou a caixa dos medicamentos na mesa de cabeceira da cama. Aos poucos o calmante fez efeito, portanto, adormeceu sem perceber. Sem temer ser despertado novamente, virou-se de frente à porta do quarto quando acordou no meio da noite, tentando dormir. Seus olhos pesados piscaram algumas vezes e quando tornaram a se abrir, deu um trinco de pânico.

Parado, peso a cama, viu A Criatura na porta do quarto escorregando sua mão na maçaneta. Dessa vez as chamas negras não serpenteavam, e sim caíam no chão sujando tudo como se fosse piche. A Criatura se tornou tão pegajosa que se movimentava devagar, sorrateira e furiosa.

“Você não pode me machucar” pensou o rapaz “é uma Alucinação Hipnagógica.”

Mas A Criatura, tão palpável, sem rosto, sem expressão, estendeu seu

braço negro e pegajoso para a mesa de cabeceira, derrubando as caixas de remédio no chão cheio de piche.

O rapaz entrou em pânico, lágrimas acumularam no seu rosto e desceram pelas bochechas, mornas e assustadoramente reais. Seu grito estava preso na garganta dolorida, as veias tufadas no pescoço eram a prova do esforço para se mover.

“Não me toque, saia daqui. Saia daqui.” Implorou, apavorado pela sensação que conhecia aquela Criatura. Era o delírio familiar, febril, o deja-vu. Nunca a viu, mas a sentiu criando forma dentro de si, acumulando todo aquele piche peçonhento, o chorume de suas agonias. A sentiu quando sua paixonite da sala o humilhou, quando apanhou de três valentões do clube de futebol americano. Estava lá, A Criatura, deixando seus tímpanos surdos no baque apático para todo o movimento do mundo. Nada tinha sabor, apenas o gosto do piche dormente no palato.

A Criatura pousou sua mão de dedos compridos no rosto do rapaz, abrindo sua boca de dentes trincados.

Ele cordou suado diante dos raios de sol matutinos na sua janela. Só havia suor na sua cama, mas as cartelas de compridos estavam espalhadas no chão limpo.

Levantou-se, vestiu a roupa, saiu sem o desjejum pela porta dos fundos. Suas mãos tremiam, pareciam estar cobertas de piche. Seu peito cheio de veneno, seus pensamentos indicando que aquele futuro brilhante estava vez mais distante.

V

“You know that life really takes its toll

And a poet's gut reaction is to search his very soul

So much damn confusion before my eyes,

But nothing seems to phase me and this one still survives.”

A faca nas suas mãos, pontuda, refletiu seus olhos negros secos. Saiu do corredor, vendo os caixas trabalhando, os produtos sendo postos diante de computadores. O som característico, de vez em quando interrompido pela voz de um funcionário falando as últimas ofertas do dia. Indivíduos carregando suas sacolas abastecidas.

Apertou o cabo da faca, o apontou para si. Ninguém percebeu. Sua mão tremeu, vacilou, os dedos sustentaram aquele cabo com firmeza oscilante. Ninguém percebeu. Ele só queria sair desse mundo, ir para bem longe, para bem longe desses corações envenenados. Tudo era veneno, piche. Ergueu o olhar, A Criatura estava ali do outro lado dos caixas, sem rosto, alta e magra, seus braços compridos pendendo de forma desajustada ao corpo. Seu piche escorria, parecia estar derretendo. Os clientes andavam por ela sem perceber seu chorume tóxico.

“Eu quero ir embora, eu estou envenenado…”

Então se lembrou, olhando para seu reflexo na faca, daquele futuro brilhante. Tão distante, indescritível por muitos, mas quase real. O brilhantismo que eles se referiam era existir diante de um ofício bem-sucedido, dinheiro amarrotando cofres da sua conta bancária, carros na garagem. Para o rapaz, o brilhantismo era fazer o que mais amava e sentir-se bem com isso. Uma caixista de supermercado, um gari, um poeta na sarjeta vendo as estrelas. Seu brilhantismo era ser quem realmente era, o futuro ninguém poderia tocar, e era possível experimentar do êxtase não o tempo inteiro, mas em pequenos goles que aos poucos lavariam o veneno de dentro para fora.

O rapaz olhou para A Criatura parada do outro lado dos caixas e gritou:

--- Não! Eu irei sobreviver!

O grito chamou a atenção dos clientes, estarrecidos pela quebra da sua enfadonha rotina. Jogou a faca no chão que deslizou até a presença da Criatura, esta a fitou sem olhos, sem expressão, derretendo no chão até que sua forma nada mais fosse do que uma poça pegajosa.

Ele teria coragem, não iria mais sucumbir e sim perdurar.

O rapaz olhou para as próprias mãos, vendo que estava prestes a cortar seu próprio pescoço na frente de todas aquelas pessoas, caindo em si. O baque de seu ouvido começou a se expandir, como a água que escorre depois de ficar armazenada nos tímpanos por conta de um mergulho. O som de todos os clientes foi audível, incluindo o de um dos seguranças do estabelecimento que segurou seu ombro:

--- Filho, você está bem?

Ainda fitando a poça que a criatura se tornara, assentiu seguro de si ao homem que não parecia convencido, tanto que o guiou para fora do supermercado.

“Essa juventude está cada vez mais doida…” Ele pensou, para consigo, vendo o rapaz da jaqueta de couro esfarrapada e os coturnos sujos rir para si mesmo, negando com a cabeça diversas vezes como se quisesse aceitar a cena estranha que tinha feito lá dentro.

--- Se cuide, e se voltar a fazer isso aqui eu chamarei a polícia. Vá para a escola e obedeça seus pais. --- O guarda aconselhou, colocando a mão no coldre para enfatizar sua autoridade.

--- Porque eu tenho um futuro brilhante pela frente. --- O rapaz retrucou.

--- É, você tem.

E tinha, de fato, não fazendo coisas comuns e ocupando ofícios comuns, deixando que o veneno entrasse e acumulasse com os outros, fazer o piche criar forma e vir assombrá-lo durante a noite, tornando-o dormente.

Sem a faca na mão, o rapaz atravessou as ruas, voltando para a casa. Ele dormiu bem, A Criatura não voltou. Ele ainda está nesse mundo e desde aquele dia, aquele dia no supermercado, tem vomitado o piche. Aos poucos, alguns ainda acumulam, outros transbordam. Ainda está aqui, nesse mundo de corações envenenados.

“Well, I just want to walk right out of this world,

'Cause everybody has a poison heart

I just want to walk right out of this world,

'Cause everybody has a poison heart.”

-- Poison Heart ( Ramones )

James Ravencliffe
Enviado por James Ravencliffe em 14/02/2018
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