O portão

Chegamos depois de uma viagem estafante. Botei o carro na garage, tranquei o portão, nem sei como. Dormimos. Acordamos cedo e o portão não abria. Uma corrente vagabunda num furo em armengue nos impedia de tomar o rumo da rua. O indigitado portão de madeira, pintado de cinza desbotado, com dois metros e meio de altura por quatro metros de comprimento, que abria em duas folhas para dentro do quintal, isto é, desde que aberto o cadeado e retirada a corrente, mais parecia um muro intransponível, um leviatã entre a casa e o mundo lá fora.

Enquanto tentávamos abrir a gambiarra, compartilhamos alguns minutos de silêncio e visível irritação mútua. Um primeiro momento de frustração irrompeu entre o relacionamento iniciante de nós dois, pessoas ávidas por fazer boas escolhas, diante de um passado de desacertos. Enfim, num trabalho unido, ela puxava e eu empurrava, ufa... Conseguimos destravar a corrente e desunir as abas do canhestro portão. Pronto: em segundos, a liberdade estava de volta, retorna a felicidade nos nossos semblantes e uma paz glamourosa reina no universo, rompido aquele verdadeiro “muro de Berlim”. Um dia agitado por passeios e eventos pôde, enfim, tomar o caminho planejado. E o portão foi novamente trancado.

Assim que saímos, chega à rua um caminhão de entregas e, quando um gato atravessa sua frente, o motorista desvia e se choca no portão que, gigante, resiste ao impacto. O caminhão capota. A polícia vem e flagra um bando de saqueadores dos eletrodomésticos, ora espalhados pela rua lado do caminhão tombado. O povaréu não se intimida e depredam a viatura, enquanto os policiais saem em fuga. Chegam os reforços policialescos e tiros são ouvidos. As balas resvalam no portão e pessoas fogem para o mato no fim da rua. A polícia assume o controle da rua até que, na casa vizinha ao portão, uma quadrilha escondida depois de realizarem roubos à mão armada na região, revidam no tiroteio. Vários tiros atingem policiais e bandidos. A rua se tinge de púrpura, o ar cheira pólvora e o vento espalha o terror de gemidos de dor. O portão recebe respingos de sangue, até que uma chuva forte lava as cores invasoras e recupera o grisalho original. Após o toró que se tornou chuva de granizo, um tornado se cria, passa pela rua e arranca coqueiros pela raiz, derruba postes e levanta o asfalto. O portão resiste. Depois do tornado, uma nuvem de gafanhotos famintos invade a rua e devora os últimos côcos, as derradeiras palmeiras e todos os portões de madeira, exceto o portão cinza, amarrado por corrente e cadeado. Já era o fim de um dia e tanto, depois das “sete pragas do Egito”, quando o maior de todos os males surge na rua. Eis que num forte nevoeiro, um disco voador aterrissa lotado de ETs maléficos, em frente ao portão e miram nele seus raios prateados que calcinaram planetas inteiros na Via Láctea. Contudo, resiste o portão, impassível aos disparos, para terror dos humilhados assassinos intergalácticos. Restou a eles uma acachapante fuga, quando ouvem a aproximação de nosso automóvel, de volta ao seu cantinho neste mundo.

Chegamos depois de um dia agitado. A rua estava deserta. O portão estava lá, pronto para árdua tarefa de ser aberto e pior ainda, de ser fechado depois, com corrente e cadeado. Para a surpresa e gratidão de todos nós, o portão se abriu, o carro entrou, o portão se fechou, a corrente passou, o cadeado travou e dormimos felizes e seguros naquela noite tranquila, sem qualquer consciência de que mesmo as nossas maiores angústias, os mais fortes dramas e as mais dolorosas perdas podem ser somente bênçãos disfarçadas.

Aluísio Solvento
Enviado por Aluísio Solvento em 12/02/2018
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