Sob escombros

Caro interlocutor, peço que me perdoe por não poder lhe oferecer um lugar para se acomodar, mas você verá logo em breve que as circunstâncias não me são muito favoráveis. Porém, aproveitando-me - mas não abusando - de tão inesperada presença, lhe peço apenas a tua breve atenção. Nesta situação em que eu me encontro, é bom ter com quem conversar.

Você consegue ver alguma coisa? Não sei se essa escuridão em que estou imerso é devida à completa ausência de luz daqui, ou se meus olhos foram esmagados com este peso todo que me comprime. Pois bem, agora que estou nesta forma miserável, me bate um tremendo arrependimento por ter buscado abrigo. Assim que os primeiros alarmes soaram, corri para este lugar onde eu me imaginava seguro, a fim de me salvar do caos prenunciado.

Ora, acho que logrei êxito em sobreviver às explosões, mas acabei nesta terrível sinuca de bico.

Sinto minha cabeça latejar; deve ser por causa da minha posição. Não sei bem, mas suponho que eu esteja de cabeça para baixo. Meu corpo todo dói - digo, não faço ideia da situação da minha cintura para baixo, pois não sinto nada ali. Não sei a quantos metros de profundidade estamos, mas a julgar pelo absoluto silêncio que nos rodeia, suponho também que estejamos a muitos e muitos metros da superfície.

Bom, suposição é o que não me falta. Supus me salvar da morte, mas agora anseio muito por ela. Não consigo mensurar o tempo em que estou aqui: se a apenas alguns minutos ou anos. Você sabe? Ah, não? Sim, claro... afinal, você acabou de chegar. Enfim, não é tua culpa não saber. O tempo corre diferente neste lugar. De qualquer forma, me ressinto por não ter ficado na rua naqueles últimos instantes que antecederam o impacto, e morrer como todos os outros. Quem sabe eu teria respirado fundo e, em segundos, compensar uma vida inteira de desinteresse pelas pequenas e belas coisas da vida.

Não consigo me virar, meu corpo todo está preso aqui. É terrível, você deve imaginar: não ter sequer a liberdade de apoiar sua cabeça sobre os braços a fim de buscar uma posição mais confortável para conversar. Espero que você possa me ouvir bem, afinal, sinto que a única parte de mim livre é a boca, que uso para respirar e falar. O meu fôlego curto é devido ao fato de que meu peito está tão apertado por estes blocos de concreto, que não consigo nem fazer os movimentos normais de inspiração e expiração. Me desculpe se esta fala compassada torna a conversa morosa e enfadonha.

E o calor? Consegue sentir? Sufocante. Sinto como se estivesse debaixo de três cobertores quentes numa noite de verão. Seria o Inferno pior do que isso? Ou será que já estou morto, vivendo minha condenação eterna? Ou, quem sabe, purgando minhas culpas não perdoadas durante a vida…? Isto é mais acalentador de se pensar. Desta forma, ainda posso manter as esperanças, não é mesmo?

Entretanto, é triste imaginar que este é o meu fim, ou seu limiar, e eu sequer ter tido a oportunidade de um padre para me confessar. Me desculpe, não quero acumular mais uma mentira às minhas culpas: oportunidade eu tive sim. Só me faltou interesse. Tomara que um grande santo reze por mim e leve a toda poderosa providência divina a ter piedade de meu sofrimento e permitir que eu me assente ao Seu lado pela Eternidade.

Por isso, meu amigo, sugiro que não deixe nada para depois. Viva bem, e viva agora. O teu fim pode ser tão repentino que ele surgirá no dia como nada mais, nada menos, do que um simples compromisso qualquer. Igual a comer alguma coisa às três, ou se encontrar com tua namorada na frente do Café antes do jogo.

Bom, enfim, meras conjecturas e suposições. Como você bem sabe, nem sei se estou vivo. Também nem sei se você existe, ou se está aí ainda. Ah, está? Obrigado. A fala fanhosa é por conta da minha língua, que está seca devido à poeira de concreto, que também estala pedriscos entre meus dentes. Espero que eles sejam, pelo menos, nutritivos, pois são meu único alimento neste local. Já engoli um monte disso, e meu estômago deve ter virado um tijolo.

Fico aqui pensando - afinal, tempo para pensar é o que não me falta - na minha família e nos meus amigos. Será que eles estão assim como eu? Ou teriam melhor sorte, nem que seja a de terem sido esturricados repentinamente por uma bola de fogo sobre suas cabeças? Tomara que não se preocupem comigo, pois me doeria saber que minha mãe e meu pai teriam que sofrer a perda de um filho. Acredito que nenhum pai deveria passar por isso na vida. Deve ser uma dor maior do que esta que me assola.

Imagine só você, quantas pessoas como eu, na história, já passaram por isso? Morrerem num lugar qualquer, diminuídas de sua humanidade, mais imprestáveis e esquecidas do que um inseto qualquer? Tantos desaparecidos e indigentes, tantas biografias que ganharam o fim mais indigno de nossa nobre existência que possamos imaginar. E as pequenas criancinhas, imagine só! Nem sequer aproveitaram a vida, e já se viram nessa situação inexplicável e patética. Ah, mas talvez elas sejam mais afortunadas: não tinham maturidade suficiente para entender tal desgraça, e morreram numa paz maior do que a de um adulto cheio de culpas e dilemas.

A vida é preciosíssima. Como poderíamos imaginar dádiva maior? Um mistério universal: a razão de existirmos, pensarmos, nos relacionarmos. Não sei se você é religioso, mas eu acredito ter sido concebido pelo amor de um Deus que tudo pode. Olhe só, que coisa linda: nascer pelo amor de um ser insondável, etéreo, maior do que se pode imaginar. Que presente melhor poderíamos ter recebido? E olhe só a ordem das coisas: haveria alguma outra hipótese mais adequada do que essa?

O acaso? Besteira… tudo é complexo demais para se acreditar nisso. Se você acredita nisso, meus parabéns: tua fé é invejável. Mas enfim… não vamos discutir por isso, não? Ultimamente não se pode mais falar sobre este tipo de assunto sem que vire uma briga. Quero aproveitar bem da tua presença, e usufruir desses breves minutos que me dispensa. Como você está só de passagem, pode ficar à vontade, da melhor forma que conseguir. Você não tem a obrigação de passar pelas mesmas agruras que eu. Teu destino é diferente deste. Você é mero espectador.

Pelo menos no momento.

Oh! Você não pode ficar mais? Sim, sei… você tem muitos assuntos para resolver. Bom, mas não se esqueça disto: viva bem a tua vida, e não se preocupe com o que virá; pois, quando o ponto final for escrito nas páginas da tua existência, você não terá do que se ressentir.

Bom, mas se você conseguir isso, decerto você será um santo. Morrer sem qualquer ressentimento. Porém, isso não nos cabe saber. De fato, apenas lembre-se disto: viva bem. Faça os outros felizes. Não seja um peso desnecessário na vida de ninguém. Não use as pessoas como objetos, nem seja causa de tristezas. Sei que na multidão dos nossos sentimentos e dos encontros e desencontros que temos uns com os outros, atritos virão, mas se você for justo e honesto, teu fim será coroado.

Adeus, meu efêmero amigo. Não se esqueça de mim. E não tenha pena deste pobre diabo que vos fala do fundo desta escuridão sepulcral. Teu fim também chegará.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 01/02/2018
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