MORCEGOS
Por Roosevelt Vieira Leite
Caracangaia é uma próspera cidade deste país. Lá, as pessoas tem oportunidades muitas. Pelo menos era este o comentário frequente de um dos seus mais fanáticos admiradores – Zé da feira. Zé da feira, um comerciante de todos os tipos de frutas e verduras recebeu o legado de seus pais – Ser louco por sua terra – “Por Caracangaia, mato ou morro”. O comerciante de meia idade tinha sua propriedade residencial no bairro Colinas. Na ‘Colina’, como o povo comum comentava as pessoas sabem o que dizem: “É a sociedade rapaz, povo estudado!” Assim, Zé da feira se formou, assim o rapaz viveu, até, o dia em que tudo mudou. Certa feita, um cidadão desconhecido se apropriou de forma indevida da bolsa de trocados de Zé da Feira. O vendedor de frutas teve seu dia de trabalho subtraído. Zé da feira soube do paradeiro do moço e foi ter com ele; não pelos trocados, mas, para perguntar-lhe o porquê de sua ação tão abominável. Zé da feira só não sabia como o encontraria na vila que ficava no outro extremo do município – O “Buraco”. Os que viviam no bairro “Fazendinha” chamavam o lugar de “buraco”, uma vez, que era um buraco mesmo. Era uma antiga pedreira onde, por séculos, os escravos extraíram a matéria prima que construiu o município – as pedras de calçamento. Com o tempo, com extrema dificuldade, as pessoas foram cavando cada vez mais, até, que encontraram os veios de antigas, e velhas cavernas que constituíam, na verdade, o subsolo de Caracangaia. Os moradores das cavernas pagavam para isto. Era uma prestação pequena, mas, muito sofrida para ser paga, além disto, a luz fraca e trêmula, e a água que certinha chegava nas torneiras na forma de rodízio – dois dias na semana, levavam grande parte da renda. Zé da Feira, facilmente, encontrou a casa de seu compadre na parte superior do buraco. Este era o perímetro da pedreira que fora usado para a construção de um condomínio de casas populares. Lá, Zé perguntou a um amigo se ele conhecia um tal “Toninho”. O rapaz lhe respondeu “Não”; e depois disse: “Deixe quieto”. Zé da feira tinha na mente que não havia outra opção; o jeito era entrar fundo no buraco para encontrar o rapaz: “Eu só quero dizer ao moço que, aqui, tem para todos; é só fazer o que eu faço – trabalhar”. Na parte nordeste do buraco, o nível das calçadas vai se inclinando; sua pessoa perceberia logo, que se tratava de uma entrada para uma rede de cavernas todas sustentadas por rochas antigas feitas do mais puro granito. Ao longo dos corredores, haviam placas escritas em Iorubá. Uma delas dizia: “Pedra mãe”. Zé da feira parou um instante para ver as placas e observar ao redor. Era de fato, uma grande rocha no formato de uma vagina negra. A pedra, na sua parte frontal se inclinava para o chão como duas conchas unidas que se abriam para formar a entrada da caverna que recebia a todos os visitantes como a única passagem para os circuitos intermináveis de cavernas. Zé arregalou seus olhos castanhos, fez o sinal da cruz, e foi andando para frente, sempre para frente. O calor aumentava à proporção que Zé sentia o cheiro de carne assada na brasa. Era uma família de Caracangaia que estava a comemorar alguma coisa. “Oi”. Cumprimentou o comerciante. “Oi”. Responderam de volta. Ninguém se interessou pelo Zé. Parecia sua figura a de um estranho em sua cidade. Logo, logo, o cheiro de carne cedeu lugar ao de esgoto. Haviam vazamentos da cidade de cima. A água suja caía sobre as cabeças do povo do buraco. Zé pensou positivo e respondeu sua dúvida para si mesmo: “Em 15 dias isto estará resolvido”. O destemido Zé pensou em continuar sua marcha, mas, desta vez, foi interrompido pela voz fina de uma senhora estranha: “Num vá mais não meu filho!” A mulher estranha era de fato uma anomalia da natureza. Seu cabelo loiro tinha fios lisos e crespos como o do povo de África; seu olho direito era verde e o esquerdo um botão negro numa bandeja vermelha. Sua boca era mui esquisita, pois, o lábio inferior era furado com um graveto atravessado, e suas orelhas tinham brincos de ouro e coquinhos de dendê. A mulher falava alto, mas, Zé da feira pouco pode ouvir: “Ninguém sai do buraco” Esta foi a segunda sentença inteligível que chegou aos ouvidos do comerciante. No entanto, Zé da feira estava determinado a dar o seu conselho, afinal, segundo ele, ele não poderia negar a este estranho a chance de ouvir o seu segredo. O calor aumentou ainda mais. Zé estava chegando às bifurcações; o lugar onde se ouve e se ver em tempo real o que ocorre, lá, em cima, na colina. As pedras das paredes ecoavam os sons de cima e suas imagens eram reproduzidas na mica e quartzo dos granitos. Eram festas no clube da cidade, reuniões nos porões das lojas, e luxúria com os membros ilustres da cidade de cima. Zé viu que o povo do buraco estava a par destas coisas, e mesmo assim dava risadas e dançava ao som de qualquer batuque. O povo do buraco, era na verdade, um povo alegre. Zé se indignou com o que viu e ouviu, mas, não desistiu de sua crença – “Uma palavra pode muito, quem sabe o rapaz entenda que regras são regras”. Zé continuou sua busca pelo tal Toninho. O buraco ficava cada vez mais complexo, agora, Zé tinha de escolher para onde olhar, pois, ele estava em uma encruzilhada de cavernas. “Que lado eu tomo, qual a minha direção?” “Eu vou por aqui”. Enquanto o mundo de fora era exibido nas paredes internas do circuito de cavernas, Zé prossegue sua marcha incansável por Toninho. O comerciante de Caracangaia não sabia dos morcegos que eram muitos. Ao vê-los, os animais se assustaram e partiram fugindo do invasor, porém, um deles ficou. Era o um morcegão grande, forte e determinado a enfrentar o cidadão real de Caracangaia. “Que queres, aqui, na minha caverna?” “Não sabes tu que cada um tem o seu buraco?” Zé urinou-se ao ouvir a voz do mamífero voador. “Mas, que que é isto?” O morcego, rei do grupo, fala mais uma vez ao visitante de cima: “Rapaz, se você não se explicar direito a coisa vai ficar difícil pra você, eu conheço muito bem a minha morcegada”. As rochas gemeram mais uma vez, era a hora da educação e informação vindas do alto. Ao som do barulho das paredes de granito, a morcegada volta correndo e se aninha de cabeça para baixo para assistir “Amor, amor, sempre amor”, o maior sucesso das cavernas. Durante o episódio, os morcegos, ora entravam em euforia, ou, ora em depressão. No final de cada capítulo, uns se sentiam culpados sem saber o porquê, e outros, possuídos de grande ânimo, saiam para fazer a diferença. Enquanto isso, Zé retoma sua busca por Toninho. O rapaz procurou o quanto pode até que desistiu, e se lembrou, finalmente, que não sabia o caminho de volta. “E agora?” Zé andou por mais cavernas, em cada uma viu uma cena diferente. Em uma delas ele viu o nascimento de uma burrega. Em outra, ele viu a conquista de Marte. E, ainda, em mais outra, ele viu um atalho para cima. Era uma propaganda que passou só uma vez na parede do quarto das corujas. “Aonde você encontrar um curva na forma de cotovelo dobre e entre no buraco a esquerda e suba sempre”. Quando Zé encontrou este caminho o povo do buraco o deu como perdido. Sete dias depois, Zé vê uma claridade vindo de uma pequena abertura protegida por pedras finas e pequenas. Zé sobe na direção da pequena luz, até que enxerga um terreno liso e pegajoso. A abertura era muito estreita para ele. Além disso, um cheiro de carne podre soprava de algum lugar de fora e de outro desconhecido de dentro. O cheiro era repugnante. O rapaz examina a abertura, e nota ser a mesma flexível. Com as duas mãos, ele fez uma força como que rasgasse a boca de um bicho grande, e foi se espremendo como um filhote a sair do ventre de sua mãe. Para tirar os pés do buraco, Zé teve de virar cambalhota. Ao se erguer, ele se deparou com o cadáver de um negra que estava na calçada de um supermercado. A mulher era ossos e carne necrosada. As moscas não paravam de zumbir ao redor do corpo e de lhe penetrar os orifícios. Estava ainda claro, mas, a tarde já se despedia, lentamente. Zé viu que a pobre mulher tinha sido acorrentada à duas toras pesadas de madeira, e sido posta ali para vender nós moscada, e que haviam se esquecido da coitada. Ela era, certamente, uma “escrava de ganho”, coisa muito comum no passado. Todavia, para o pobre Zé da feira aquela mulher era a que o havia feito nascer de novo. Zé pegou uma nós do tabuleiro inerte, limpou sua camisa bege de linho, e sua calça jeans, fez o sinal da cruz, e foi para sua casa sem perguntar mais nada, o rapaz se calou. Diz o povo de Caracangaia...