A CARTA - Um conto surreal

Dona Miúda, como fazia todos os dias, já estava na cozinha preparando o café para o seu Ildefonso e arrumando as coisas para o almoço, quando, pela janela da cozinha, que dava para o quintal, viu o menino. Ainda era cedo da manhã e dona Miúda estranhou aquele menino àquela hora. Olhou bem para ele. Estava bem vestido, com roupas finas, de sapatos bem lustrosos, sério. Com certeza não era daquelas bandas.

- O que será que o diacho desse menino quer aqui, numa hora dessas? – Falou baixinho, sussurrando para si própria, tirando o avental e ajeitando o vestido. O menino continuava lá em frente à porta principal, esperando. Trazia um envelope com ele, observou dona Miúda.

Abriu a porta devagar, e o menino estava lá em pé, parado, empedernido como um soldado.

- Ôxente! Que diacho vosmicê veio fazer aqui, a essa hora, seu menino? – Perguntou bem ríspida. Àquela altura, dona Miúda já estava com um pressentimento ruim.

- Bom dia, senhora! – Disse o menino, solene. – Trago uma carta para o seu marido. Ele está?

- Uma carta? Que diacho de carta é essa? Posso ver? – Dona Miúda que já não estava gostando daquele menino bem cedo de manhã na sua casa, com a história da carta, então, lhe aguçou mais ainda a curiosidade.

- Não posso lhe mostrar a carta, não, senhora. Só posso entregá-la somente em mãos próprias, ao próprio destinatário, que no caso é o senhor seu marido. Caso ele não esteja em casa, terei de esperá-lo, nem que seja por um dia inteiro. Não me foi dada a opção de voltar sem ter entregue a carta. – Disse o menino num só fôlego, circunspecto.

Dona Miúda ficou emudecida diante de tanta eloquência daquele fedelho esnobe. Ficou imaginando o que seria o diabo daquela carta. Será que o marido tinha se envolvido nalguma falcatrua? Ou então era a carta de uma amante? Também lhe passou pela cabeça que poderia ser um convite de alguém importante para uma festa, quem sabe um casamento chique da alta sociedade. Aquele menino era muito bem-educado e não se parecia, nem de longe, com nenhum dos meninos dali das redondezas. Mas era certo que o tal menino não lhe entregaria a dita carta.

- O Ildefonso, meu marido, está tomando banho. – Enfatizou dona Miúda – Vou ver se ele já terminou. Vosmicê menino aceita um cafezinho? Quer entrar um pouco? Fiz um bolo de batata-doce agorinha mesmo, quer um pedaço? – Perguntou ela.

- Infelizmente, terei que declinar de seu convite, senhora. Minha tarefa é apenas entregar essa carta ao senhor seu marido, e nada mais. Não posso aceitar nada em troca. – Disse o menino que continuava ali, em pé, impassível.

Dona Miúda suspirou e entrou, deixando a porta entreaberta. Olhou para trás e viu que o menino continuava ali, petrificado, na mesma posição. Aquilo já estava ficando esquisito, pensou. Entrou no quarto e encontrou o seu Idelfonso já vestido, a toalha em volta do pescoço, enxugando o cabelo.

- Tem um menino esquisito, metido a besta, aí fora, te procurando. Quer entregar uma carta. – Falou dona Miúda, já meio abusada com aquela história.

- Um menino? Carta para mim? Lá fora? Tem certeza? – Retrucou abalado, o seu Ildefonso.

Dona Miúda percebeu logo a mudança no semblante do marido. Já o conhecia há mais de quarenta anos e sabia quando tinha alguma coisa errada com ele. Sabia, por exemplo, só em olhar para ele, quando estava feliz ou preocupado. Sabia até quando estava mentindo. Percebeu que ele, naquele momento em que ela lhe falou do menino e da carta, como ele teria ficado bastante nervoso. O suor começou a escorrer pelo corpo e a lhe encharcar a camisa. Nem parecia que ele tinha acabado de se enxugar. Viu também quando ele se esgueirou até a porta do quarto para ver o menino que continuava lá, incólume, em posição de sentido, em frente à porta entreaberta. Viu ainda quando ele correu para o banheiro, esvaindo-se em fezes, que lhe escorria pernas abaixo. Percebeu assustada que tudo aquilo era muito mais sério do que imaginava ser e viu ainda, que aquele mau pressentimento que sentiu bem antes, estava se tornando real.

O marido saiu do banheiro já recomposto. Abraçou dona Miúda e ela teve a impressão de que ele estava bastante febril e tremia muito. Dona Miúda ia já saindo às pressas para fazer um chá de gengibre, para baixar a febre, quando ele a deteve. Agarrou-a com mão forte e foi com ela até a porta, onde esperava-o, o menino. Dona Miúda, sem entender nada, começou a sentir fraqueza nas pernas e sentou-se para não cair. O seu Idelfonso recebeu a carta, abriu-a e leu pacientemente. Leu outra vez e mais uma vez. Dona Miúda observava o marido absorto com a carta na mão, diante do menino. Devolveu o papel ao menino que deu meia volta e saiu sem olhar para trás.

- O que foi, Ildefonso? O que foi aquilo? O que tinha na carta? – Perguntou Dona Miúda, aflita, desesperada, sentada, quase desfalecendo.

- Há coisas que não se deve saber, mulher. – Disse o marido, revigorado.

Um vento forte entrou casa adentro, balouçando as cortinas. A manhã estava radiante de sol de um dia de verão. Ildefonso pegou a mulher pela mão.

- Não era a carta que eu pensei que fosse. – Disse ele, sereno, beijando a testa da esposa, atônita, perplexa e confusa. Sentou-se à mesa, como se nada tivesse acontecido.

- Vamos tomar café. – disse