Natal solitário

Ele era um homem pacato, desses que fala pouco, ri pouco, fechado e sem problemas mais sérios. Afinal, os homens, geralmente são seres simples, diretos, racionais, fáceis de se agradar ou de se desagradar, bermuda, chinelo, regata, cerveja, churrasco, mulher. Ele não era diferente.

De família quase perfeita, pais que se casaram e nunca se separaram, irmãos, três homens, ele o quarto, sem vícios, casados com mulheres quase perfeitas, casas com animais de estimação e tudo quase perfeito. Quase. Como toda família. As aparências e convenções falam mais alto.

Sua mulher, baixinha – as mignons são as melhores – não era tudo o que gostaria. Falava pelas ventas. Quando desembestava a falar do vizinho que coloca lixo na lixeira da frente da casa sem autorização, do pároco da igreja que freqüenta que tem um caso com a cabeleireira, apesar de ela não deixar de freqüentar religiosamente a missa aos domingos, da mãe do amigo do filho mais velho que vem trazer o menino na casa para fazer trabalho e não volta buscar até anoitecer; isso tudo é de matar. Sem falar que quando vem buscar seus cabelos molhados e roupas extravagantes revelam o que deveria estar fazendo a tarde toda enquanto o marido trabalhava. Ah, essa mulher ele ainda não tivera a chance de conhecer. Mas a mulher, apesar de seu jeito boquirroto e cheio de maledicência ao reclamar dos preços do supermercado, dos filhos que nunca a ajudam nos afazeres da casa, era o que podemos dizer mulher pra homem não botar defeito na cama. Ao menos nunca negara. E retribuía a todos os carinhos. Não era o que seus amigos de sauna do clube que frequentava diziam. Suas mulheres sempre estavam indispostas. Um dia, as famosas dores de cabeça, um dia, dor nas costas, outro, mentiam – eles sabiam – estarem menstruadas. Pois bem, sua mulher não. Sempre disposta e receptiva às sua vontades. Quase perfeita.

Um dia ela falou que queria passar o dia de Natal na casa da irmã e do cunhado. E assim foi. Sua mulher, quase perfeita, aceitava tudo e não contradizia a nada que ele quisesse ou pretendesse. Dessa vez ele aceitou. Afinal, a família quase perfeita está sempre unida.

Tudo se deu na maior normalidade. Os abraços, as boas vindas, as indagações sobre os negócios, sobre a vida. E à noite o jantar quase perfeito, um caldo de lentilha feito pela cunhada para atrair bons presságios e sorte para o novo ano. Ele odeia lentilha! Mas para fazer jus à perfeição, vamos à comilança.

E como odiava a cunhada! Era, além de todos os atributos mais detestáveis da mulher, era feia. Sua voz esganiçada e aguda ecoava no espaço como som de auto-falante em vinil rscado, vez por outra falhava nos agudos.

O concunhado falava de futebol e perguntava sua opinião. Ele não entendia nem o porquê de se correr atrás de um objeto tão insignificante como uma bola de couro. Que horror! Mas a família quase perfeita resiste ao tempo e às adversidades. E afinal, o que custa ser educado e simpático aos papos chatos de família?

No outro dia seria véspera de Natal. Como uma família perfeita, não faltariam comilanças e bebida à fartura. Foram ao supermercado local, gastos com as compras divididos em partes iguais, tudo quase perfeito. Ao entardecer, forno ligado, comidas em fase de cozimento, tudo perfeito. Quase.

A cunhada vai ao quarto buscar as roupas para o marido que tomava banho no banheiro de fora, pois ele, porco chauvinista, está acostumado a receber tudo nas mãos. Enquanto isso, sua esposa tomava seu banho na suíte para os hóspedes.

Ele, num ímpeto, enquanto picava as carnes na pia, vai até o quarto onde a cunhada está, e, arrebatado, olha pelo vão da porta sua nudez enquanto tira a roupa para o banho próximo. Nada sentiu além de asco. Aquele corpo flácido e enrugado pelo tempo e o ”mau uso” não lhe ofereceu nenhum atrativo aos olhos, senão uma vontade de chegar perto, bem perto e ficar-lhe a faca para o corte da carne antes sem vida que o esperava na pia. Agora, foi o que fez na carne viva da cunhada. A mulher feneceu sem nenhuma reação pelo inesperado ato e os últimos sussurros de vida que ainda restavam lhe saíram pela boca como um adeus sem sorte. Ele, sem nenhuma reação de espanto ou arrependimento, sai e encontra o concunhado que vinha cobrar as roupas e sem pensar desfere mais duas, três facadas profundas e indiferente ao ato de terror, termina com mais uma vida.

Sai do corredor em meio à poça de sangue que escorre por entre seus pés e se depara com a esposa que olha com olhos de medo para seu algoz. Ela, que viu a faca pingando sangue e o cunhado no chão, não tem tempo de reação, além de um bramido quando sentiu o fio da navalha na carne, uma, duas, três e sabe-se lá quantas após desfalecer.

Ele, pula o corpo desfalecido, e vai até a cozinha.

Termina os preparativos, desfia o peru pronto da Sadia, liga a TV no show do Roberto Carlos, estica os pés na poltrona com o copo de Jack Daniels e sente a felicidade da solidão mais esperada do ano. Depara-se com um livro na estante de Nietzsche. E a frase lhe chama a atenção: “Detesto quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeira companhia”. Ah, a Filosofia!!!

Silvinhapoeta
Enviado por Silvinhapoeta em 01/01/2018
Código do texto: T6214185
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