HOMEM SEM PALAVRA
O homem sem palavra agachou-se diante do Criador e, em seguida — até por uma questão de coerência dessa narrativa —, ficou em silêncio, parecia meditar. Este, onisciente, interpretou de imediato o motivo daquele gesto: o homem sem palavra pedia-lhe em pensamento algumas vogais para poder continuar a viver socialmente. Reconhecia que fora um falastrão em sua vida pregressa, que jogara muita conversa fora, que contara muito papo furado, que abusara das proparoxítonas, das citações latinas... enfim, sabia que havia gasto toda a sua cota, todo o seu repertório semântico de papai-vou-ser-embaixador antes mesmo de chegar à velhice. Estava, portanto, naquele instante, vivo aos trinta anos de idade, mas sem palavra; inferia que dessa forma estivesse valendo menos que a Barsa, que a Larousse, que uma conta no Orkut ou uma simples assinatura de telefone fixo.
O Criador... — Tudo bem, o cara é realmente onisciente, mas essa o havia pegado desprevenido: por que diabos lhe serviriam apenas as vogais? — refletiu meio constrangido por não compreender aquele pedido. Então, o homem sem palavra respirou profundamente, se concentrou e mandou via mental: “É que o carnaval de Salvador está próximo, daí eu pensei em descolar uma graninha fazendo uns arranjos musicais aí ó...
O Criador acabou aquiescendo, mas antes, como todo bom patrocinador, foi conferir in loco aquele nicho de mercado.
Torna-se desnecessário, mas como bom baiano, insisto em dizer que nada resiste ao toque do Divino. Deu no que deu!