BOVINOS
Barroso era um boi não muito velho, que vivia na pampa gaúcha, filho de um touro brabo que era pai de uma boa manada na região. Criado pela mãe, a vaca Joana, da Fazenda Jacarandá, lembrava de ser amamentado nas manhãs frias do inverno rígido daqueles pagos sulinos. A geada branqueava os campos que aos poucos eram aquecidos pelos raios do sol quando este aparecia.
Barroso se criou pastando nestes campos, fugindo das chuvas nos matos escassos da redondeza, namorando com as novilhas da sua idade. “Sacanagem me fizeram quando eu era terneiro, me caparam, tiraram minhas bolas, não posso gerar filhos”, reclamava Barroso para sua amada Carminha, uma linda vaca que pastava com ele, todos os dias, depois comiam sal e bebiam água no açude. Nestas horas se tocavam, se beijavam com as línguas molhadas. Todos sabiam que namoravam.
Barroso olhou para o lado e reconheceu um a um dos bois que estavam no curral do frigorífico. Tristes. Esperando a hora de serem abatidos. Era o destino histórico, naturalizado pelos humanos, de matar os bois e fazer consumo da carne, do couro, das tripas, dos chifres, das patas, da merda que estava no bucho. O homem, montado em seu cavalo, conversava com os bois, parecia que se entendiam, e se entendiam, com o olhar, o olhar dos bois a caminho da morte, parece que sabiam seu destino, pensava o homem, e os bois se movendo, indo um a um, para o abate, para virar bife, churrasco, carne de panela, filé ao molho, milhares de pratos servidos nas mesas da cidade e das fazendas.
No Brasil o rebanho bovino está em torno de 200 milhões de bois, vacas e touros, número maior que o da população humana, em torno de 195 milhões de pessoas. Existe mais de um bovino por humano, nesta terra continental de língua portuguesa.
Barroso encontrou seu irmão Betinho, pêlo branco, bonito, o mais visado pelas vacas da fazenda. Tinha um olhar alegre, corria pelos campos, brincava com os outros bovinos desviando das árvores no mato com extrema habilidade, sem quebrar um galho. Orgulhava-se disso. Não era gordo, comia pouco e mantinha a forma esbelta, por isso era admirado pelas vacas. Sonhava em viajar para uma Exposição, ganhar prêmios, ser fotografado, aparecer como grande campeão nos jornais e na TV. Quando estava nas proximidades da casa da fazenda, via pela janela a TV. Sabia que nas manhãs de sábados passava um programa rural com reportagens sobre as feiras de gado. Mas este privilégio era só dos touros, os escolhidos, os fabricados pela cabanha, seu destino era outro, virar churrasco, quem sabe numa festa na Expointer. Que ironia. Nada podia fazer Betinho. Estava ali, no curral, esperando na fila para morrer, já sem o olhar alegre, agora com os olhos caídos, tristes.
“Êra boi, êra boiada”, gritava o peão em seu cavalo, com seu chapéu tapeado, com seu relho de couro trançado, batendo nos bois, movimentando a boiada para o funil da mangueira, para a casa de abates, onde seriam executados, pendurados em ganchos, cortados em pedaços para a indústria de alimentos dos humanos. Era o fim de todo boi. As vacas ficaram no pasto, tinham que dar leite e novos terneiros para os humanos. Mas também virariam churrasco um dia. Era a regra.
Betinho despediu-se de Barroso e entrou na fila, estava chegando a sua hora, ele sabia, o relho batia, o cavalo lhe empurrava, ele não queria entrar, berrou, se deitou, chegaram mais homens, agarraram o boi forte, até que abateram. As últimas palavras que Betinho ouviu foram: “Cuidem para não manchar o couro deste com sangue, é bem valioso no mercado, branquinho, muito lindo.”
Barroso fugia para o fim da fila, os peões metiam os cavalos pra cima deles e gritavam, tinham que fazer o serviço, estava chegando uma nova manada, precisavam fazer andar a fila, o consumo estava crescido, sociedade moderna, hábitos consolidados, mais dinheiro circulando em todas as classes, mais compra de carne, e aquele frigorífico abatia em torno de 700 animais por dia, era um movimento intenso, empregava mais de 800 pessoas, trabalhadores e trabalhadoras, humanos, comedores de bois, diariamente, uns mais, outros menos, mas comiam bois, todos os dias do ano.
No fim da mangueira Barroso, o boi filho da vaca Joana, encontrou um velho amigo das coxilhas, o boi Pedrão, boi velho, estava sendo poupado há anos, mas agora chegou sua hora, antes que a carne ficasse muito dura e desse prejuízo. Pedrão cumprimentou Barroso com seu olhar triste e perguntou pelos irmãos. “Os que não viraram churrasco, em breve estarão virando nos espetos de churrascarias por aí”, disse Barroso ao velho amigo.
O cavalo avançou, os dois bois foram empurrados, Barroso na frente, trancou as patas no chão, o relho bateu, ouviu os gritos dos peões, sentiu a martelada na cabeça, o choque, a faca no sangrador, no cérebro começaram a passar as imagens do campo verde com suas flores amarelas, as vacas e ovelhas pastando, os riachos, o barulho da água, a lambida da vaca amada, a escuridão, o fim da existência. Estava abatido. Sendo carneado, levado nos ganchos, cortado em partes, uma trajetória histórica, naturalizada... pelos humanos.
Lá no campo, como quem soubesse do destino de mais estas duas crias, a vaca Joana pastava triste, olhando para o chão, catando trevos de quatro folhas.
Conto publicado no romance deus, Sul. 2014.