Ivisibilidade

Uma coisa de que jamais conseguira se livrar foi da consciência de sua insignificância. E nem era porque o fizessem de lembrar-se disso a todo instante, às vezes, nem o faziam tanto, como se conseguisse passar a idéia de se um ser menos mofino, de uma forma natural. O fato é que se via assim. Sua atitude era sempre arredia, gostava quando não era notado e pensava no quanto seria bom andar pelas ruas sem que ninguém desse pela sua passagem. A invisibilidade social de que passara a vida à mercê não o incomodava absolutamente. Queria ser literalmente invisível. E foi imbuído desse desejo que adormeceu aquela noite.

Um susto! Olhava para aqueles cotos pendentes da cama. Não podia ver os pés, mas sentia-os, percebia na planta dos mesmos a frialdade do piso de cerâmica. Lembrou-se de que os amputados podem sentir o membro perdido mesmo eles não estando mais lá e essa idéia o apavorou. Tocou-os com as mãos e pode tateá-los perfeitamente. Apalpou os dedos, massageou os calcanhares. Ao tato estava tudo certo. Se fechasse os olhos não havia nada de errado. Fez o teste. Era isso. Mas quando os abria via suas mãos mexendo no vazio como num show de mímica. E essa agora?

Ergueu-se. Calçou as chinelas de borracha. Caminhou até o banheiro. Era surreal. Sentia o chão, mas olhando para baixo via as chinelas caminhando sozinhas com dois cotos flutuando a um palmo acima delas. No banho podia ver a espuma escorrendo acompanhando a anatomia apenas suposta de seus pés. Vestiu-se, calçou as meias e os sapatos e voltou a ser um homem normal. Olhou-se no espelho. Era ainda ele mesmo, cagado e cuspido. Não tinha com que se preocupar.

Na sua ocupação normal do dia a dia chegava a esquecer o delírio daquela manhã, talvez tivesse exagerado um pouco no conhaque noite passada e fosse só isso. Mas à tarde, aproveitando uma visita ao sanitário, deu uma conferida e percebeu que seus joelhos haviam desaparecido. Por sorte, quando as pontas dos dedos de suas mãos começaram a se tornar invisíveis, já descia do ônibus de volta do trabalho, meteu as mãos nos bolsos e apressou o passo. Foi direto para casa. Ao destrancar a porta percebeu que o processo estava se acelerando. Sentiu o contato do metal da chave com as pontas dos dedos, mas viu o objeto avançar sozinho para o buraco da fechadura, apenas seguido de perto pelo coto do braço.

No banho pode ver no espelho o seu tronco flutuando e a água espumenta fazendo uma cascata do final do ponto visível para baixo. Foi divertido observar a toalha criando formas aéreas em evoluções artísticas impressionantes. Jantou sozinho como sempre. Os talheres pareciam aos olhos objetos animados, como que desempenhado seu papel por vontade própria.

Já bem tarde contemplou seu rosto no espelho demoradamente. Sabia que o estava vendo pela última vez, já não passava da parte frontal de uma cabeça voadora. Certamente sentiria saudade, mas sorriu e foi dormir quase em paz.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 24/10/2017
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