O homem que voltou para pedir perdão
Muitos me perguntam o porquê quis escrever esta história, e a explicação que dou é muito simples: quero manter viva na memória das minhas sobrinhas, Elise e Eloisa, os últimos meses da vida do pai delas, Everaldo. Elas ainda não sabem ler, mas creio que um dia conseguirão tomar este escrito em mãos, sentar-se-ão e lerão com apreço. Dedico estas linhas a seguir as elas.
Everaldo e Flávia, minha irmã, conheceram-se ainda no colégio. Começaram a namorar e logo conceberam a primeira filha, Elise. Este foi o acontecimento que levou a irem morar juntos. O começo da vida conjugal deles não começou com muito luxo, mas tinham o suficiente para viverem bem. Depois de um tempo decidirem ter mais uma filha, a Eloisa. Moravam em uma casa modesta em uma rua tranquila na pacata cidade de Ourém. Mas tudo mudou em maio de 2016.
Era noite, o silêncio da madrugada fazia-se reinar por toda a cidade. Há algum tempo, Everaldo vinha reclamando de dores no estômago, sempre procurava ir ao hospital, mas apenas lhe passavam uns remédios e mandavam-lhe para casa. Everaldo acordou no meio da noite, foi ao banheiro e começou a vomitar muito sangue. O sangue saia pela boca, nariz. Além do banheiro, o quarto em que dormia também ficou todo ensanguentado. No dia seguinte deu baixa no hospital municipal. Ficou uns dias internado, mas não lhe deram nenhum diagnóstico. Como sempre, apenas pegou uma simples receita, passou na farmácia, comprou alguns remédios para aliviar alguns sintomas, como dor no estômago, etc.
— Acho melhor tu procurares um médico particular, deve ser algo sério. Toda vez que vamos ao hospital eles só passam esses remedinhos que não resolvem quase nada — disse Flávia com voz triste.
— Vou ver, acho melhor mesmo — respondeu Everaldo.
Everaldo tinha por volta dos seus trinta anos. Há algum tempo tinha deixado seu ofício de cabelereiro para se dedicar a tarefa de pedreiro, pois ganharia mais dinheiro. Estava terminando de construir, ele mesmo, a sua casa. Queria também montar uma mercearia. Empenhou-se nesta tarefa. Era uma pessoa de hábitos controlados. Não gostava de festas, não consumia bebidas alcoólicas, ia sempre ao culto aos domingos.
Depois daquela noite a saúde piorou. Mas sem ter nenhum diagnóstico preciso dos médicos, continuou sua vida de trabalho normalmente. Vez ou outra passava mal. Passava uns dias no hospital e sempre o mandavam para casa. Até que as suas forças físicas começaram a o impedir de trabalhar na construção. Definhava a cada dia um pouquinho. Passados uns meses não conseguia mais se alimentar como antes. Comia um pouco e logo se sentia saciado. E quando não, vomitava tudo.
Conseguiu, com o ofício de pedreiro, comprar uma moto, além da que já tinha, e começou a montar sua sonhada mercearia. Aliás, ultimamente era o que estava sustentando a pequena família. Teve que empreender diversas viagens a Belém, a fim de procurar melhor ajuda médica. Repetia sempre, com muita confiança, para a sua esposa:
— Não vejo a hora do médico mandar logo eu para uma cirurgia e assim resolver logo meu problema.
Entristecia-se por não conseguir trabalhar e sustentar a família. Mas alimentava a esperança de cura. A essa altura já tinha perdido bastante peso. Estava magro, olhos fundos, comia pouco e ao mesmo tempo não segurava a comida no estômago. Ficava triste por não saber o que tinha. Passou por uma bateria de exames, esperava esperançoso o resultado. Dias depois saiu o resultado, Flávia foi receber sozinha:
— Não podemos fazer mais nada — dizia o médico entregando-o em suas mãos.
Flávia pegou o resultado entristecida. Era câncer no estômago e já estava avançado. Voltou para casa incrédula. Não sabia se contava a verdade, pois Erivaldo alimentava uma esperança muito grande. Porém alguns dias depois tiveram que voltar ao hospital e o médico podou as últimas esperanças ao contar a verdade para ambos. E foi aí que Everaldo descobriu o que verdadeiramente tinha. Sem esperança retornou para a sua casa em Ourém para junto de sua família e onde passou os últimos dias. Foram dias longos, sofridos, tristes. Estava já bem debilitado, não comia mais nada, pouco falava. Os ossos já estavam salientes.
Era outubro de 2017. Passados mais de um ano, estava a família reunida, esperando o último suspiro. O sofrimento era visível e um sentimento de tristeza perpassava no semblante de todos. De repente aconteceu o inevitável: Deu o último suspiro, expirou!
Enquanto os que estavam presentes choravam o desatino, Erivaldo viveu um momento mágico: Levantou-se da cama, passou por entre todos. Achou estranho seu corpo magro estirado na cama. Não sentia nada, nem mesmo o chão debaixo dos pés. Abraçou sua esposa, mas ela nem sequer deu bola, pois estava olhando seu corpo magrelo. Caminhou pela casa, tocou em todos um por um. Não se reconheceu no corpo que velavam, estava diferente. Caminhou pela casa, foi até a rua, olhou-a. Voltou para dentro. Tentou conversar com seu sogro, mas em vão. Ele não o ouvia. Percebeu que havia uma pessoa semelhante a ele presente na casa que não conhecia, mas que o observava. Foi até ela:
— Quem é você?
— Vim lhe buscar. Sou um ser espiritual.
— Como assim?
— Olhando a cena, não consegues imaginar?
— Morri?
— Não, simplesmente mudaste de condição. Estás em um estado de ser que não há mais sofrimento.
— Mas nem me despedi deles. Queria ainda dizer umas últimas palavras.
— Tudo bem. Não tem problemas. Volte para seu corpo, mas tem uma condição.
— E qual é?
— Seu tempo será limitado. Você não pode saber quanto, por isso, diga somente o que realmente for importante. Pense bem no queres dizer, pois quando der seu tempo, você apagará. Seu tempo começa a ser contado no momento em abrires os olhos. Fique à vontade. A hora em que quiseres voltar, pode voltar.
Erivaldo ficou pensando no que dizer. Foi onde estava as suas filhas, abraçou-as fortemente, mas elas não sentiram nada. Pensou por um tempo. Caminhou pela casa, parou em cada cômodo. Voltou para o quarto. Voltou para o seu corpo. Abriu os olhos, e balbuciou algo. Pediu que chamassem a todos os que estavam presentes na casa. Um a um pediu perdão. A seu sogro entregou-lhe novamente sua filha juntamente com as netas e pediu que as cuidasse. Ainda falava quando seu tempo terminou. Agora, já consciente de sua nova condição. Estava sereno, seus olhos voltaram ao brilho de antes, seus ossos não salientavam mais. E com o sorriso que sempre carregava no rosto, foi-se afastando devagar.