O Encontro






Acordei ao som do telefone, que tocava insistentemente. Esfreguei os olhos e fui, sonolento, atender. A voz feminina do outro lado disse que eu era o pai de um certo Valmir. Olha, creio que você está enganada, respondi. Não há engano algum, você é o pai. Tum-tum-tum ...
Uma semana depois meu sono é novamente interrompido pelo toque do telefone. A mesma voz, um filho lindo, uma criança doce e não demonstra nenhum interesse por ele, que tristeza! Eu não queria, mas sabe como é, o garoto cresceu, exige que eu lhe apresente o pai. Tum-tum-tum...
   Pensei em instalar um identificador de chamadas. Alguém estava decidido a me perturbar.
   Acordo. De um salto atendo ao telefone, você não virá mesmo? Fingindo inocência, é isso? Aqui é Juciléia, seu canalha. Lembra agora? Gutembergue, tudo bem, esqueci de passar o endereço, anota aí... vou esperá-lo na rodoviária dia três às quatorze horas. Só existe um horário de ônibus aqui nesse fim de mundo. O garoto quer lhe conhecer, venha!
     Ela sabe o meu nome! Anotei o endereço em um pedacinho de papel e voltei a dormir.
    Dia três, quatorze horas, o telefone toca, acordo cambaleando, olha aqui seu canalha, se não vier na próxima quarta-feira, a gente se vê nas barras do Tri-bu-nal, entendeu? Exames de DNA, pensão retroativa. Está bem, eu vou. Tum-tum-tum... Anotei o endereço noutro pedacinho de papel e voltei pra cama.
    Selei o cavalo para dar um passeio nos páramos. A brisa alvoroçava meus cabelos. O sol batia em meu rosto. Um flautim-rufo empoleirado em uma árvore... Um casal de sabiá constroi o ninho. O cavalo troteia. Apeio à beira do córrego e sento sobre o tronco de uma árvore, que não resistiu ao tempo.
    Gutembergue é o meu nome. Homenagem ao Gutenberg, o inventor da imprensa. Coisa do meu pai. Mas o escrivão certamente nunca tinha ouvido um nome esquisito e ficou assim. Cidade pequena, interior, meu pai disse mais tarde, que teve de explicar ao moço do cartório como se escrevia Gutembergue... Não, filho, ele não teve culpa. Mas, pai, isso não importa, podia ser Alexandre, Heráclito, Pedro, tanto faz.
    Acabei esquecendo de ir ao encontro de Juciléia, conhecer Valmir. Mas Juciléia e o pirralho estavam dispostos a me colocar contra a parede. Vou dar-lhe a última chance, Gutembergue, se não vier a jiripoca vai piar. Não estou brincando! Está bem, irei, esqueci por causa do meu cavalo, o flautim-rufo... O quê? Tá me achando com cara de otária? Desta vez irei sem falta, passa o endereço. Já passei. Perdi. Anota aí, imprestável!
     Ônibus lotado. Saída à meia-noite. Calor. O motorista se dirige aos passageiros. Explica a duração da viagem, as paradas e pede para colocarmos o cinto de segurança. Vejo que só eu me afivelo. Algumas pessoas conversam entre si. Ao meu lado um sujeito forte ocupa parte da minha poltrona, atirando-me para o corredor. Face de magarefe. O ônibus ganha as ruas com destino a ... Ao entrar na rodovia o magarefe começa a roncar. Cutuco sua costela gelatinosa. Ele se mexe. Fico mais espremido. Volta a roncar.
      Oito da manhã desembarco na rodoviária. Uma pequena cobertura de telha de amianto, para um ônibus, na rua principal. Uma mulher de olhos puxados aguarda, segurando um garoto pela mão. Você é a Juciléia? Pergunto. E esse é o Valmir, dá um abraço em seu pai, filho! Ei, diz alguma coisa ao seu filho. Mas não sei o que dizer, digo oi Valmir. Trouxe algum presente?, inquire Juciléia. Não tive tempo, o flautim-rufo... Como assim, você ia dar um flautim, que é isso, uma flauta? Tenha paciência! Ah, o cavalo, o sol, também por causa do casal de sabiá construindo o ninho... Não vou discutir com você na frente do garoto, seu filho, Gu-tem-bergue! Tiro do bolso algumas moedas, dou ao menino, que sai correndo. Entra no bar, aos pulos. Olho. Um filho. Meus pensamentos voltam para o flautim-rufo. Juciléia faz um gesto qualquer, diz algo, mas não ouço. O sol está quente. Queima minha pele.
     Que horas o ônibus retorna? Como assim? Não me diga que veio ver seu filho e... Não vai passear com ele? Dar-lhe carinhos, conversar... Mas já conversei, olha lá, ele comendo chocolate.
   Juciléia dirige-se ao pequeno público, que se encontra na rua, de frente aos botequins. Pessoal, prestem atenção nesse homem. Vocês sempre me perguntaram pelo pai do meu filho. É ele o pai de Valmir, esse garoto que vocês veem aqui na praça quase todos os dias. De hoje em diante não precisarão perguntar mais. Todos sabem da minha luta, para sustentar esse menino lindo. E o pai dele? Só fala em flautim-rufo... Por acaso algum de vocês trata um filho assim? Sei que não, pois conheço cada um aqui, mas quem é Gutembergue? Nem beijou o filho e disse meu querido, papai está aqui e te ama...
    A rua começa a ficar pequena para a turbamulta, que me rodeia. Olham-me de modo estranho. Não entendo. Juciléia não para de falar. Tapo os ouvidos com as palmas das mãos. É assim que trata seu filho? Digo que a viagem foi longa e cansativa, não dormi, um sujeito roncava e o flautim-rufo... À merda o flautim, à merda seu cansaço, trata-se de um filho!
     Não me lembro de nada. A enfermeira mede minha pressão e sorri. Pergunto sobre o flautim-rufo. Ela sorri de novo e diz que ele está bem.
       Em seguida durmo.



 
 
Integra o livro Crônica do Amor Virtual e Outros Encontros - Editora Protexto 2012 - primeira edição esgotada.